Na contagem das estrelas

“... Guardemos as dádivas
e, no abismo que desabrocha
— rosa da madrugada —
em nossa carne deserta, sepultemos
a espessa, subterrânea nostalgia...”

Ivan Junqueira

                 Depois do que lhe aconteceu, ela teve de ir embora. Menina-moça de má fama não poderia, em noite de céu arregalado, estender o corpo junto aos dos seus no cimento que circundava sua casa. A barriga apontava na contagem das estrelas e, por mais que disfarçassem, ela podia sentir a vergonha da família estocada na calçada.
                 — Vem cá, benzinho. Uma vezinha mais, vai...
                 A voz não era a da lembrança. Virou-se e viu o homem chumbado de suor.
                 — A hora acabou, moço. Me paga e vá saindo que mais tarde tenho ainda freguês.
                 Houve um tempo em que freguês era a quem ela atendia na venda de Seu Manoel. Apenas precisava dar-lhe sorriso, boa-vontade e a certeza de que ele estava com a razão. E isso ela fazia bem.
                 — Assim você alcança os Andes, Luzia.
                 Luzia não sabia o que era os Andes, mas sabia que o olhar afiado em suas ancas não era a garantia para que ela viesse saber e nem se tornar a gerente de seu estabelecimento. E havia o Sebastião que, se desconfiasse das intenções de seu patrão, o mataria assim como todos os sonhos que a acalentava: comprar uma casa com telhas para os pais; fazer o irmão estudar para ser doutor; ver-se com um vestido que não aquele de chita, untado de tanto uso e sabão; e casar com vestido de noiva com...
                 — Entra, fecha a porta. Quanto tempo você vai querer? Meia-hora paga 50; hora inteira dobra. Se for mais...
                 Mas não pode continuar. Dobrou-a o homem, de terno e dentes cuidadosos. Encurralou-a frente à parede, entre o armário velho e a penteadeira descasada de espelho, e a dor aguda que sobreveio encaminhou-a aos sinos da única igreja de seu povoado. Os sinos de sua terra, estes sim, sabiam dobrar, principalmente quando uma noiva se casava.
                 O Sebastião, também. O pai, quando tomou conhecimento da gravidez, quis matar o “sem préstimo pra nada, só pra embuchar”. Não precisou. Sebastião foi encontrado no rio, inchado de tão morto que estava há semanas.
                 E ela pensando que ele estava arrumando uma casinha para os dois longe dali...
                 — Chega! Não agüento mais. Hoje não atendo mais ninguém.
                 O homem sorriu os dentes cuidadosos e a olhou. Pela primeira vez. Depois, avançando com ela em direção à cama e tirando o cinto da calça que ainda mantinha no terno desalinhado, disse:
                 — Ah! Benzinho, você ainda não viu nada.
                 — DRAGÃO! — gritou Luzia, uma única vez.
                 Um murro despencou a porta e a figura de um homem, com olhos esbugalhados, surgiu, dragando o cliente para rua ao mesmo tempo em que exigia o dinheiro pelo serviço prestado.
                 Luzia abriu a janela e suspirou. Um dia a mais se fora e ela novamente trançava o crepúsculo como se o nu de suas costas pudesse cobrir-lhe a solidão. Mas a hora aquela era a da seca, a que nem o pó dos segundos acoberta. O pai, a mãe, a filha, os irmãos, farelos no olhar...

Rosane Villela

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