A inválida invadida
ou De quando a inválida foi invadida pela poesia
Sua vida estava parada. Desde aquela época não se sentia mais uma pessoa, não se sentia bonita, não se sentia viva ou atenta, veloz ou esperta, amada ou amante. A decepção daquele amor a tornara amarga. Tinha agora medo das relações e um certo receio do que seria de sua vida futura como mulher. Com o antigo amor fora-se também sua libido, um pouco de seu charme, bastante de sua auto-estima e um bocado de seu gosto por aquele verbo conjugado no infinito, ou melhor, no infinitivo: viver.
Olhou-se no espelho aquele dia e sabe-se lá porque, tudo isso veio à tona. Reconheceu-se como um zumbi, morta-viva, não era uma pessoa. Não flutuava como noutras épocas, não andava sequer, arrastava-se apenas entre o nascer e o por-do-sol. Passara por um trauma, só agora se dava conta. Talvez devesse ter procurado ajuda psicológica há muito tempo. Subestimara, em muito, o efeito doloroso que toda aquela relação -- ou melhor, a ausência dela -- fizera com sua mentecorpo. Estava magrela, mal cuidada, o peso do tempo mostrava-se feroz sobre si. Não mais prestava atenção ao que vestia e mesmo sua alimentação consistia apenas daquilo que precisava para manter-se viva. Perdera o prazer da gastronomia, o prazer do bem-vestir e o prazer do conquistar. Sua feminilidade, antes tão clara, evidente e natural, agora se via escondida em recônditos profundos, porões escuros e labirintos cavernosos de sua psiquê. Não poderia tê-lo abandonado, não deveria tê-lo feito, não deveria senão ter-se entregado.
Era manhã e esses pensamentos a invadiam enquanto olhava seu corpo descuidado e desnudo frente ao espelho. Ela nunca fora assim: não tivera essas rugas, essa má postura, esse... esse desgosto consigo mesmo. Tomara consciência, finalmente, de tudo o que vinha acontecendo desde muito. E se por um lado ela tenha tido um certo desgosto e nojo de si mesmo e de seu corpo neste instante que agora relatamos, não se pode dizer que este momento não tenha sido importante. Ele foi: e muito! Foi este reflexo disforme e grotesco de si ao espelho que a fez repensar toda a vida. (Como autor e narrador devo considerar que exagero: não era assim de fato tão grotesca sua figura e havia, de fato, muitos que a pensavam linda, mesmo nestes tempos de descuido. Fato é que já fora desejada por muitos e esta sensação de asco por si mesmo, embora falsa num sentido exterior a ela, era bem verdadeira dentro de sua mente: com relação à forma em que a moça pensava sobre si. Estamos aqui invadindo seus pensamentos, não estamos apenas relatando o fato ocorrido. Uma vez claro este ponto, retomemos o relato.) Agora, deitada na cama, ela teve a consciência de que precisava mudar, sabia que precisava tomar uma atitude de recuperação, sabia que precisava acordar e respirar e tomar conta de si, voltar à sociedade e viver plenamente sua vida. Já fazia cerca de dois anos que andava ladeira abaixo, segundo suas contas atuais. E já tinha descido o suficiente, era hora de reerguer-se.
A busca pela causa de tudo aquilo não lhe angustiava, estava certa de ter sido o amor perdido, ao qual ela mesma negara devido à força de estúpidas amarras sociais. A sociedade lhe disse que não deveria ficar com ele por causa disso e daquilo e ela, ao invés de se revoltar contra a desprezível moral cristã, engoliu a pílula vermelha e deixou-se acabar. Mais teria valido, ela vê agora, ter apostado em seu amor. Isso a teria feito linda e cheia de si, teria feito-a feliz e esperançosa. Talvez já tivesse casado e tivesse filhos ao seu lado, rodeando-a. Esta idéia tornava esta personagem ainda mais amargurada, posto que nada disso seria recuperável: o amor, a história, a despossibilidade. Tudo estava acabado e a oportunidade perdida deixava-a imersa num mar de melancolia.
Romeu e Julieta suicidaram-se devido à expectativas da sociedade perante si. Fato inegável: o amor não está ligado à sociedade, ele não respeita suas regras. O amor é livre, leve e solto. Tristão e Isolda foram também vítimas do confronto entre o amor e a sociedade. A sociedade costuma vencer as lutas com relação ao amor, ao menos nos mais célebres romances de nossa era. E isso talvez venha da fraqueza do ser humano, esta covardia regada de medo que por vezes dilacera o coração dos amantes. A história de uma sociedade é mais forte que a potência do verdadeiro amor. Triste é perceber que a tradição ainda reina e a força do próprio verbo "reinar" evidencia a história da humanidade, a história de um povo que nunca foi livre porém escravo de uns poucos que pensam poder dizer a todos o que há de bom ou de ruim neste mundo: os reguladores da sociedade. Todas as leis morais devem ser sempre e novamente postas em dúvida posto que não há absolutamente qualquer moral absoluta no universo. Todas as morais são relativas e estão ligadas à história do desenvolvimento moral de grupos de seres humanos. E, veja agora: o amor também tem uma característica forte de desobediência civil. O amante não pode e não deve se sujeitar às leis sociais, o amante deve ser livre para fazer o que quiser, ir onde desejar, ultrapassar os limites daquilo que a sociedade lhe diz que se possa ou não fazer. O amor não segue leis, ritos ou costumes. Não necessariamente. O amor tem sua própria moral. O amor verdadeiro deve ultrapassar e vencer qualquer sistema de regras arbitrárias, posto que ele é maior e mais intenso; mais forte e vigoroso. E isso se dá porque o amor é talvez o mais belo sentimento que um ser humano pode sentir. Ele não deve e não pode ser vencido ou suplantado por nenhum outro sistema irreal ou artificial que tenha sido criado para associar valores de bem ou mal às pessoas e às suas ações, para facilitar a dominação de uns por outros. O amor é capaz de compreender tudo, apesar dos apesares. O amor é dividir, é se dar e é compreender, mesmo nas mais adversas condições imagináveis.
Seres humanos, entretanto, são fracos, são falhos e são covardes. Escolhem por vezes escutar a sociedade e não o amor. E assim se acabam. Foi esta a crise de consciência que hoje nossa personagem teve ao ver que não deveria ter trocado seu amor ao escutar os conselhos caretas daqueles à sua volta. Deveria tê-los dados todos de ombros. Aquele houvera sido seu mais forte amor, talvez o único verdadeiro que tivesse tido desde a mais tenra infância, à exceção do amor pelos familiares. E este amor havia sido correspondido! Mas ela não havia se entregado: sentira segurança no relacionamento, mas havia sido iludida do contrário por outros membros da sociedade que desaprovavam certos atos de seu amante. Confiou mais na tradição do que no sentimento. Foi fraca e assim se acabou. Agora estava ainda mais fraca e desmilingüida. Seria ainda mais difícil reerguer-se neste momento. Cá entre nós, ela chegou a ensaiar seu suicídio e desistiu apenas porque também para isso era fraca.
O mundo, no entanto, renova-se a cada dia. O sol se põe de um lado e nasce do outro, nós dormimos e nós acordamos, elas menstruam e ovulam, o ciclo da ressurreição permite-nos sempre encontrar um ponto a partir de onde possamos novamente recomeçar. Olhando no espelho e respirando fundo, ela teve certeza: seu dia de fênix seria aquele. E nem mais um outro. Já dormira demais, traumatizada por matar em si o sentimento que a fizera maior do que todos os outros seres, elemento único e perfeito de um cenário cósmico caótico e não planejado, unida de forma permanente à toda história da vida que antes a houvera precedido.
Acordou novamente e daquele dia em diante, seria uma nova mulher. Herdaria também um pouco de uma filosofia oriental, um tipo de luz própria deveria agora iluminá-la: o auto-conhecimento. Daria mais razão aos seus próprios sentimentos e menos razão aos sentimentos dos outros e de toda a tradução cultural que carregava ou que carregavam aqueles que estavam à sua volta. De fato, não estava em meio aos seus, o que facilitava a ação. Imigrante geográfica, optava agora pelo chauvinismo sentimental. Ninguém mais daria pitaco sobre seus sentimentos e suas relações. Nem ela mesmo pensaria suas relações de uma maneira assaz racional ou ligada a qualquer sistema lógico baseado em cadeias argumentativas e conceitos não eficazmente associados à realidade. Seria agora só sentimento. Tomaria conta de si, amaria a si mesmo antes de tudo, faria as pazes com seu corpalma e só então estaria novamente preparada para uma nova etapa em sua vida. Assentou-se e chorou por alguns instantes. E sabia que ainda choraria várias vezes até que estivesse realmente preparada para uma relação e um homem e um amor. Mas chegaria lá, posto que era isso que sentia em sua mais íntima essência e era isso que faria com que se sentisse plena como um ser vivo, uma mãe, uma continuação de um caminho ao invés de um fim em si mesma. "A vida consiste no amar e é o amor que dá sentido à vida", pensou. Chegando nesta conclusão, não mais saiu, na certeza de ter encontrado um mínimo global efetivo para sua angústia sentimental. Amaria então, primeiro a si, cuidando de seu corpomente e talvez, depois de finalmente recomposta e refeita, abrir-se-ia como jamais houvera feito e estava certa de que encontraria também alguém assim aberto ao amor e ao amar. Ao receber e ao se entregar. Felicidade e sintonia serena. Música em mesmo tom. Em breve seria amada e amante, musa e artista, objeto de adoração e ser adorador. E quando este dia chegasse, ela finalmente voltaria a andar passos acima do chão. E flutuaria assim e assado, até que o tempo se acabasse...
Francisco Prosdocimi