Pequeno mundo emergente

                     Pela manhã se ouve pouco ruído. Nada se mexe. Nada além de um breve pensamento. O ser anula-se. O espírito vital ressona. Uma mortificação rústica, de comum mesmo, e de alongar os ossos; até que sonolento, verte-se o corpo e erguer-se, para cima, para a cidade, para a vida. Penso sempre que a cidade também dorme, ou são os prédios que permanecem surdos e alheios a nós mesmos e continuam a despertar sozinhos? Despertar não. Não são pessoas! Devem permanecer inertes ao longo de sua longa vida de bloco maciço. Eles não se importam com nada nem ninguém. Provavelmente. Alienação concreta. Os prédios seriam autistas?
                      Levantei os olhos. Minha vontade era de arrancá-los por tanto que doíam. Como se limpasse pára-brisas, igualzinho, cocei aquelas bolas doloridas, com cansaço. Sentia-me só. Muito mesmo. Sozinha e com um medo estranho, e remexia com a língua a saliva áspera da boca que fazia barulho de coisa melando. Sufoquei solucinhos, até isso, e pequeninas lágrimas faziam voltas às olheiras. Eu não sabia de quê o medo era feito. E como se descobre por que se sente medo? Não queria ficar me lamentando de nada, mas o caso era sério. Acordei com o maior buraco do mundo no peito.
A casa em que eu morava se assemelhava a uma senzala. Estrutura forte, só que mal-cuidada, e o teto ficava lá no céu. A pintura havia descascado depois do último temporal e minha mãe ainda não tinha providenciado a reforma. Falta de verba. De longe, a minha casa parecia uma mansão fantasma. É bem verdade que se podia ouvir o chão ranger a cada passo. E mesmo assim eu não sabia porque sentia medo, nem nada.
                     Naquela madrugada quase manhã, a janela do quarto estava aberta. Imagine um janelão de madeira maciça que devia ser da época da minha avó novinha, ou mais ainda. O recorte observado por aquele buraco retangular era de uma noite escura, molhada, e os galhos de árvore debruçados sobre o parapeito pareciam mãos de velho, carcomidas, encalombadas e cheias de veias saltadas. Percebia-se que elas planejavam alguma coisa. Certamente. Dava para escutar o cochicho. Apesar de parecerem árvores, aquelas ali tinham aura humana. De verdade. O barulho do entrecruzar de galhos era de arrepiar. E não é legal olhar coisa assim. Dá um nervoso danado.
                     Eu sentia um aperto tão grande no coração que me doía tanto! Era tão sensível a esse tipo de sentimento que podia apostar que sentia o troço me subindo, e cada vez que tentava distrair a cabeça, mais forte ele voltava e doía. Minha vontade era de gritar até minhas veias do rosto explodirem, berrar com a voz dos trovões se eu a tivesse, e se os trovões falassem e tivessem voz, quanto mais gritos. Alguma coisa precisava acontecer para eu parar de sentir isso.
                     Eu não entendia também, mas precisava matar uma voz irritante que nascia dentro de alguma parte do meu corpo e insistia em se irradiar. Eu tinha raiva. Queria me afogar, o que quer que eu fosse. Aproximei o corpo da janela. Subi, escalando as paredes, o parapeito . Vi o chão cinza-escuro lá em baixo, e.

Mariana Mello

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