PRESUNÇÃO DE FELICIDADE
Tomando meu velho expresso, vi esse senhor chegar. Foi em direção ao caixa, com um cigarro na boca. Era desses que têm a habilidade de falar com o cigarro entre os lábios. Acho charmosos os homens que têm esse hábito.
A lanchonete em que estava não era realmente uma lanchonete, com uma porta e mesinhas espalhadas em frente a um balcão de guloseimas. Era, na verdade, uma grande mesa redonda, vazada no centro, onde havia os lanches e os garçons rodavam o tempo todo buscando atender a todos os clientes. Eu estava lá uma vez por semana. Sempre pedindo um expresso. Mas havia pessoas que almoçavam e outras que pediam apenas um chiclete.
Apesar de me achar P.h.D na arte de observar as pessoas, não vi o que o senhor pediu ao caixa. Mas acho que foi um maço de cigarros. Pagou, virou-se e sentou-se próximo a mim.
Só de olhá-lo, poderia descrever toda a sua vida. Não era homem de sorrisinhos. Mas não parecia pernóstico. Era, simplesmente, introspectivo. Tinha modos refinados e uma cordialidade envolvente. Em discussões, discordava fazendo com que seus opositores se sentissem superiores intelectualmente. Guardava sua prepotência pra si. Sentia uma grande dificuldade em misturar-se. Achava que muitos ao seu redor eram tolos e superficiais. Verdadeiros soldadinhos, que nunca se pegavam devaneando sobre o significado da vida. Mas sua postura cortês fazia com que todos o adorassem. Alguns até o veneravam. Sorte sua não ter vaidade suficiente para viciar em elogios. No fundo, queria se afastar dessa gente sanguessuga que sempre lhe mendigava ajuda e atenção. Mas era gentil e não sabia ser diferente. Os outros o viam como um ser prestativo, com quem sempre poderiam contar. Será que ninguém percebia que por trás daquela fisionomia solícita existia alguém que só queria viver sozinho? Por que insistiam em perturbar seu sossego? Por que ele não conseguia ser bravo às vezes e recusar ajuda?
Era casado e tinha um casal de filhos. Poderia manter o padrão alto de vida apenas com a renda de alguns de seus investimentos. Mas gostava de trabalhar. Sabia que preenchia os requisitos sociais. Todo o mundo gostaria de ter a vida que ele tinha. E ele sabia disso. Não esnobava, nem se sentia superior pelo extrato de sua conta bancária, muito menos se vangloriava por estar com sua primeira e única esposa há mais de trinta anos. Seguir o padrão não o satisfazia, mas era uma presunção de felicidade. Ninguém o questionava. Todos sabiam que qualquer um com dinheiro e mulher não poderia ser mais feliz. Dessa forma, nunca ousou agir diferentemente.
Sua filha era a mais velha. Morava sozinha e se mantinha com os recursos separados por ele. A essa altura, formada, já poderia pensar em casar. Mas , ao contrário de todas as suas amigas, não tinha namorado. Teve vários ao longo da vida e terminou sempre que se sentiu insatisfeita. Nunca teve medo de ficar só ou de não encontrar alguém à sua altura. Por isso, nunca se prendeu a relacionamentos falidos, cheios de queixas, desentendimentos e frustrações. Sabia que era capaz de ser feliz sozinha. Mas suas amigas não. Em todos os encontros sociais, era questionada a respeito de sua pré-matura solteirice. Estar só era uma presunção de infelicidade. Ainda que estivesse formada, trabalhando, usufruindo das riquezas da família, conhecendo o mundo inteiro, se dedicando às artes e à filosofia, fazendo tudo o que lhe proporcionasse crescimento como ser humano, deveria sempre se justificar. Deveria sempre dizer que era, sim, feliz por isso, por isso e por isso.
Já seu filho, um poço de imaturidade, usufruía tanto do dinheiro, quanto da disponibilidade das mulheres. Não era de ficar. Namorava sério por volta de seis meses. Não aprofundava os laços, mas tratava todas as meninas a pão-de-ló. Sua felicidade também não era questionada. Para a sua idade, sua postura era aceitável. Gastava muito e namorava muito. Escolhia sempre garotas com certa limitação não só intelectual, mas desprovidas de alguns valores. Assim, ficava mais fácil conquistá-las com presentes e restaurantes caros. Aproveitava o que podia e não conseguia extrair muito de suas companhias, nem muito por sua culpa, infelizmente, mas era o que procurava. Às vezes se impacientava com aquelas bonecas vazias, mas tudo aquilo era motivo de orgulho e inveja para seus amigos. Não podia mais voltar atrás. Tinha que fazer por onde.
Sua esposa. Bem, sua esposa era, aparentemente, muito recatada. Letrada, versava sobre diversos assuntos, fluente em Francês, exímia administradora do lar e assídua nas reuniões do Grupo de Ajuda ao Próximo da cidade. Concordava com a visão de seu marido em seguir os padrões e parecer satisfeita aos outros. E essa era a sua imagem até mesmo para as suas amigas mais íntimas. Mas sua analista sabia o que ocorria por trás dos bastidores. Tinha um relacionamento estritamente sexual com o veterinário de sua cadelinha, que ocorria todas as sextas-feiras, no dia do banho. Essa era a sua forma de se sentir viva. Já havia um discurso pré-formulado contra a traição em sua mente. Usava-o quando era questionada por suas amigas fogosas que viam na traição uma possibilidade de fugir do tédio. Não podia opinar de outra forma. Para todos os efeitos e a fim de evitar a fofoca daquelas invejosas, batia sempre na mesma tecla: tinha um marido perfeito, um alto padrão de vida e ninguém poderia ser mais feliz do que ela. O segredo foi a única maneira que achou para fugir das pressões sociais. Dizia-se amada, mas já sabia que amor é coisa de adolescente. Uma convenção tola e imperiosa que movia a vida de todos. O que existe, de fato, é uma adaptação, um comodismo a alguém que tem objetivos parecidos com os seus. Mais nada.
Por acaso, hoje é sexta-feira e ele ainda está aqui ao meu lado, fumando um cigarro. Sabe Deus em quê está pensando. Já imaginou se tivesse a capacidade de ler meus pensamentos? A essa altura estaria tendo uma crise de risos ao se ver descrito de forma totalmente diversa da realidade.
Viviane Costa