A casa dos relógios

                    Era uma casa povoada de relógios, que insistem em contabilizar lembranças que não se apagam. E, assim, segundo a segundo, os tic-tacs vão construindo o passado.
                    Quase nada se sabia daquela família, a vizinhança antiga fora toda embora e os novos moradores do bairro nunca viram ninguém entrar ou sair. Apenas um piano se fazia ouvir, acompanhado, eventualmente, pelo canto solitário de uma triste ária. No fim da tarde, avistava-se uma aristocrática silhueta de mulher acariciando um gato. Aliás, o felino era o único a ser visto rondando pelo quarteirão à procura de comida. Parecia sempre esfomeado como se não o alimentassem.
                    Uma moça para em frente à casa, hesita e empurra o portão que solta gemidos de sonolência. Uma hibernação de esperas. O gato a identifica e sobe vagarosamente as escadas, como que convidando-a a entrar. Seu olhar acompanha os movimentos do animal que pula no colo da elegante senhora. Reconhece a mãe que pensara nunca mais rever. O olhar terno da matriarca reitera o convite.
                    Percorre com desalento cada cômodo, procurando as marcas de uma estória que preferiria não ter registrado tão bem. Ao passar em frente a um grande espelho vê, assustada, a menina que foi. Antes que pudesse entender, uma mão lhe toca o ombro. Sua mãe lhe oferece o braço e juntas percorrem os corredores empoeirados. Lençóis amarelados cobrem os móveis e as teias de tão antigas parecem rendas. Há algo de sofisticado nesta displicência.
                    A cada porta que se abre, a imagem de uma antiga crise. As brigas constantes, os flagrantes, a correspondência violada, os tostões surrupiados, os namoros proibidos, os vícios inconfessos. Já era mesmo hora de revisitar mágoas e resgatar afetos. E nada melhor para cicatrizar feridas antigas do que rasgá-las e deixar escoar ressentimentos. A intransigência cedeu espaço. Aquela mãe outrora implacável está doce como os caramelos de uma infância de circos e parques. Nem será preciso falar, em seus rostos há todo um microcosmo de intenções. Não se querem culpar ou perdoar, mas acolher a saudade do que se negaram.
                    No piano, as mãos tão alvas tocam um adágio. A filha solfeja como se ainda estivesse em suas lições de menina. Em cada pausa, lhe vem os flashes da última discussão: a mochila com roupas mal amontoadas, alguns discos de Joplin e Hendrix e o namorado rolando escada abaixo. A mãe vociferava como uma pitonisa a prever o pior dos destinos àquela filha pródiga. Nunca mais retornara ao lar. O praguejamento materno dera resultado e ela não quis mostrar a sua derrota. A mãe também se sentira derrotada. A brilhante concertista abortara a carreira para dedicar-se à uma família que se assemelhava a meros estudos de escala.
                    Os inúmeros relógios avisam da partida. O tempo ecoa pela casa e os olhos vazios sabem que não mais se refletirão uns nos outros. No portão, um aceno prolongado busca reter esta magia. A filha desce a rua de paralelepípedos sem se voltar. Do alto da sacada, o gato salta do colo da senhora, uma ampulheta se quebra e aquela mãe esvanece como os melhores sonhos.

Gilberto Gouma

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