Fracasso de N'dani

Os dias eram de penúria para todos os habitantes. A terra fissurada não gerava. A estiagem durava meses, e os celeiros estavam completamente esgotados.

Gente esfaimada suplicava aos deuses melhores dias, para calar prantos de fome. Os peitos maternos também foram atingidos, os infantes chuchavam o vazio das tetas amarrotadas de suas mães, descobriam um prazer momentâneo, depois choravam desiludidos.

O conselho de anciãos, constituído por dez indivíduos, dirigido pelo madoda Madende, depois de várias reuniões e consultas, chegou a uma e única solução:

"Satisfazer o espírito do rei, que, em tempos idos, governara aquela terra ”.

O pacto assumido entre o conselho de anciãos e o espírito do rei N'dani, mediado pelo curandeiro Ovuza, consistia em ofertar uma belíssima donzela, em troca da fertilidade do solo.
Alternativa não havia, submetidos foram os representantes dos aldeãos.

Quem, de entre as donzelas seria sacrificada, em nome dos famintos? - perguntaram-se os anciãos.
O mais arrojado entre os velhotes expôs a sua proposta.

– Faremos um sorteio entre as raparigas que estão a fazer o ritual de iniciação – alvitrou o velho Malembene.

Entreolharam-se, incertos, por mais de dez minutos, depois murmuraram em surdina.

Procedeu-se a uma votação, para encontrar consenso para a única proposta existente.
A maioria votou favoravelmente a proposta avançada por Malembene.

Era o fim da tarde, quando terminaram o conselho. Podia-se notar um alívio ingrato, que lhes ficava patente nos rostos acabrunhados. Urgia anunciar aos habitantes a decisão tomada.

O tocador de palaza, fez soar o seu instrumento convocando todos os habitantes. O som alcançou a maioria dos aldeãos, que voltavam das suas machambas castigadas pelo espírito maligno. Mas muitos insistiam em amanhar a terra, na esperança de um milagre abençoar seu esforço.

Estavam todos aconchegados e atentos, dispostos a acatarem a decisão suprema do conselho.

Madende, mergulhado no seu cadeirão de pau-preto, era ladeado pelos seus homens de confiança.
“ Não é fácil ser chefe, quando é preciso tomar decisões extremas” pensou, em solilóquio.
Até vontade de abdicar do poder lhe passou pela cabeça. Acariciou a sua barbicha esbranquiçada, para disfarçar o ar grave que apresentava.

Explicou aos seus conterrâneos a solução que haviam encontrado.

– Infelizmente, teremos de oferecer uma das nossas filhas, para ser desposada pelo espírito do rei N'dani. – sentenciou, entristecido, Madende.


***

Samage marchava pela floresta densa do interior, em revista às armadilhadas que montara. Caiu no desânimo, quando nada encontrou. O braço que empunhava a azagaia amoleceu. Já vinha de regresso, quando, de súbito, uma ratazana se movimentou perto de si. O alento reapareceu, e Samage empunhou a azagaia e disparou convicto, acertando no animal.

Voltava à vila mais orgulhoso de si, trazendo consigo o troféu de sua investida, que iria dividir com a sua namorada.

O crepúsculo abarcava a vila, quando Samage a alcançou pela principal senda de acesso. Um baque lhe sacudiu o peito, quando o som de palaza se fez ouvir, mais uma vez. Samage apercebeu-se de que algo de anormal estava a acontecer, mesmo pela acalmia, que pairava sobre a aldeia, quebrada pela vagabundagem de um cachorro rafeiro.

Samage queria logo encontrar sua amada, para partilharem do fruto de sua caçada, estugou a caminhada em direcção a casa de Malia.
Um sentimento de mau agouro apossou-se de sua mente quando não a encontrou em casa. Precipitou-se em direcção ao centro da vila.
Descobriu uma multidão que cercava uma fogueira. As labaredas iluminavam o belo rosto de Malia, que sacudia o chão, numa passada ritmada pelo som do batuque.
Ela estava prestes a engolir o líquido, para selar a sua aliança com o espírito do rei N'dani.

Quando Samage a descobriu, ela já estava semi-possuída pelo espírito. Deitara-se no chão, numa convulsão dominadora. Os seios protuberantes ficaram-lhe descobertos, quando ela rasgou a blusa e se entregou a N'dani.

A lua divisava, por detrás duma nuvem cinzenta, o matrimónio de Malia com N'dani. A noite ia alta, quando uma voz rouca se fez ouvir:

– Não! Malia é minha! – gritou, eufórico, Samage, clamando pelo seu amor.

Um leão rugiu, ao mesmo tempo que Samage clamava. A disputa começara, ambos disputavam a mesma mulher. Malia perdeu os sentidos, quando viu o leão de juba grande avançar em direcção ao seu amado.

Espectadores, intimidados com a presença da fera, fugiram em direcção às suas cubatas. Os mais atrevidos ocultavam-se por detrás das árvores, atentos à peleja entre Samage e o espírito N'dani, que vestia o corpo do leão.

O centro da aldeia transformou-se numa arena, onde os contendores guerreavam. Samage empunhava a sua azagaia e procurava ferir a fera. N'dani ensaiava a melhor posição para aniquilar, de uma vez por todas, o atrevido mortal.

O primeiro salto executado pela fera resultou em fracasso, e Samage escapou em direcção à mata em busca de melhor posição. Suplicou desesperado auxílio aos seus antepassados, numa prece que solenemente lhes dirigiu. Beijou o talismã que herdara de seu pai.

E o auxílio só chegou depois da fera o ter atingido com um arranhão no ombro direito.

Os aldeões sofriam e magicavam múltiplas suposições, a propósito do destino de seu conterrâneo, enquanto Samage alinhava a azagaia contra N'dani, que efectuava um salto contra a sua pessoa.

Ambos rebolaram, pelas moitas cansadas das cercanias da aldeia, o grito de Samage misturou-se com o rugido aterrador do animal.

O som combinado da gritaria chegou aos ouvidos dos aldeãos que desesperaram por completo.

Muitos camponeses descobriram a manhã, pelos raios solares, que lhes entravam pelas fendas das palhotas. Ensonados ergueram-se vítimas de uma noite mal dormida.

Passaram-se dez horas desde que a peleja começara, e ninguém sabia do destino de Samage. Malia derramava lágrimas, pelo destino do único homem que amara, e desconfiava que jamais voltaria a vê-lo.

Um indivíduo ensanguentado marchava cambaleante pela principal rua da aldeia. O sol já ia alto e bombardeava a terra com os raios, um dos quais atingiu o indivíduo, que desfaleceu.

O velho Malembene já se fizera à rua, em direcção à sua machamba, sem deixar de se preocupar com o destino de Samage. Na sua caminhada, encontrou o corpo do fulano estatelado no chão.
Não reconheceu a criatura que tinha o rosto deformado. Tratou de socorrê-lo, levando-o para a sua palhota.

Tratou-o, com delicadeza, limpando aquele rosto descarnado, e, à medida que o fazia, ia descobrindo o resto de feição de Samage, que a fera não conseguira destruir.

Malia reencontrou o seu amado no momento em que ele despertava e balbuciava o seu nome. Malembene informou ao conselho de anciãos sobre o destino fatídico de N'dani e a vontade de Samage desposar Malia, mesmo ferido como estava.

Uma dupla cerimónia foi efectuada. Uma, para cimentar a morte espiritual de N'dani, e outra para selar o matrimónio dos amantes.

Alex Dau
(Maputo/Moçambique)

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