VIADO

           Viado.
          Gilda está na Boca vestido de mulher. A barba de uma semana, os trapos, os andrajos. No pescoço de homem faíscam, bijuteria, duas voltas de colar rubi. O cabelo grosso, oleoso, sujo de mês, prende uma grande flor de papel amarela. Gilda vai rir com os clientes dentes podres um riso que há muitos anos Curitiba não vê. Gilda não dissimula; ri e isto chocará o esgar com que o bacharel vem rindo desde que se formou na Federal.
          Viado.
          O riso podre de Gilda é o de uma boca arreganhada pintada a batom. Sobre as calças imundas, não menos imundo vestido tubinho de tafetá rosa. Escardidos os dedos se enfiam na havaiana, embora o frio de Curitiba. Na canela perebenta os pêlos — duros, agressivos. Não se ouse supor o que pode o músculo de seu braço. Mas não é só com ele que arranca ao bacharel trêmulo uma nota de cinquenta; há o insuportável escândalo do beijo à força com que a chantagem se consuma.
          Viado.
          Impossível chamar a polícia. Suprema humilhação para o bacharel da Federal é publicar em plena Boca que — não se aventure — pode apanhar, e feio, de uma bicha. Teme também o beijo mas este se perderá entre tantas, data vênia, chacotas. Duro é ser posto ao chão de terno e gravata. Terrível tentar levantar-se e levar, de novo, uma pernada. Acontecesse assim nunca mais Curitiba. Quem sabe o exílio em Catanduva ou a morte arrepiada a arsênico no quintal do Juvevê. Para não imprssionar as crianças — no galpão —, de onde só a mulher tem uma cópia da chave. Este o maior trunfo de Gilda, e o seu maior blefe.
          Viado.
          Um brupo de cinco, meu Deus!, os homens da Fundação. Um deve ser o chefe, justo o mais magro e velho e que ri de lado, escondendo o riso com os dedos muito juntos de uma das mãos. Aos ademanes, forenses, cheios de dedos, caras e bocas, gestos, Gilda tem que eles é que parecem mulher. "Ói lá, chegou a patroa e as puxa-saco dela reunida..." Excessivo açúcar, o puxa-saco põe no cafezinho do chefe que, de novo, não esconde o riso de lado e os dedos juntos no canto da boca. Só que, agora ri mais alto, para insuflar o ódio dos demais.
          Frágil presa, Gilda avança e pega o adulador por trás, no conspícuo ridículo do mimo explícito — curvo sobre o balcão ele tenta alcançar a pia para esvaziar do excesso de açúcar a xícara do chefe.
          Então é que Gilda é a mendiga-pantera de Curitiba: agarrando o puxa-saco, aplica-lhe uma chave-de-coxa e com a grande língua lambe dele a nuca, em sudorese e espasmo, e mobilizando-lhe os braços, como aprendeu na Queirós Filho, beija o homem na boca — longa e demoradamente.
          O chefe, num frouxo riso, desarma-se e o que insistente escondia, no canto do lábio, era a falta — provisória — de um canino. Os demais uivam e ganem já mexendo nos bolsos o pedágio de Gilda para existir em Curitiba.
          Ainda uma vez escaparam.
          Viado.

Wilson Bueno

Do livro Diário Vagau, Travessa dos Escritores, 2007, PR

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