Brinco de miçanga

Zé ia passando quando viu o brinco vermelho, pingente de sangue e desejo, misturado nas quinquilharias da banca da Nana. O mercado estava cheio, ele foi empurrando as gentes, se achegando, preso no brilho, tocou com o olho, foi escorregando devagar. Depois aproximou o dedo e titilou de leve, sorriso abrindo a boca desdentada. Tomando confiança segurou a miudeza e trouxe pra mais perto. A cascata de miçangas vermelhas cintilou, o sorriso dele alargou-se. Ofegou, o coração deu um salto, sentiu a boca seca.

Nana deu o preço, ele revirou os bolsos, estendeu o dinheiro para a mulher e quando ela quis embrulhar Zé negou. Nana deu de ombros, cada um com sua querença, não fazia idéia de onde Zé ia com aquele mimo nem que tivesse a quem dar, a coisa não combinava com ele. Vivia por ali, de biscates, diziam que era leso, um dia carregava umas caixas de frutas, no outro desarmava uma barraca qualquer. Não se tinha notícia que ele tivesse mulher, mas essas coisas nunca se sabem e ela já vira de tudo nesse mundo. Tendo dinheiro para pagar o brinco era dele e que fizesse bom proveito

Ele saiu trocando passo, levando o tesouro na mão fechada, de vez em quando parava, levantava a peça contra o sol e folgava jubiloso quando via o relampejar de rubi na transparência dos pequenos cristais. Atrás dele, como sempre, logo se formou o cordão de moleques, aos gritos, mas o homem não percebia nada. Hoje ele não ria e nem brigava, não ouvia a zombaria nem prestava atenção em apupo. Ia andando mergulhado no mundo à parte que o tremelicar do vermelho o afundara, e de mundo à parte Zé entendia, morava em um, onde o riso era fácil e a vida passava sem pressa. Era conhecido em toda a região do porto, desde menino sem eira nem beira, nascido de boto, enjeitado de mãe, motivo de riso, explorado aqui e ali, vivendo sem saber por que ou por onde. Nessa sina dos sem rumo e sem destino ele foi crescendo e juízo nunca lhe fez falta.

Empurrou o papelão que lhe servia de porta no barraco, um buraco que nem bicho visitava mais, mofado pelos cantos, a água da enxurrada lavando o piso em dia de temporal. Mas ali ele morava e fazia tempo. Nas paredes sujas trazia grudadas as capas das revistas que apanhava pela rua, mulheres lindas, rindo com boca carnuda, cabelos de anúncio de xampu, vestidos cintilantes. Colava uma a uma; eram sua família. Conversava com todas, brincava e mangava, não tinha preferida, eram amigas e confidentes. Para a loura ele costumava contar o dia, era a mais curiosa delas, a morena escutava calada, a ruiva, intrometida, logo tinha um palpite a dar. Viviam ali em harmonia, elas presas na parede, ele solto no mundo. Todas sabiam do amor do Zé por Maria do Socorro, o consolavam na hora da tristeza e riam com ele na hora da alegria. Quando o homem chegou com cara de mistério, um sorriso diferente, parecendo que o mundo era uma nuvem e estava enrolado nela, as mulheres se calaram que hoje ele não queria conversa.

Zé acendeu um toco de vela, puxou o caixote que lhe servia de cadeira até a mesa perneta do centro do barraco e sentou-se. Prendeu a respiração e abriu a mão devagar. A luz da vela coruscou nas miçangas. As mulheres na parede esticaram o pescoço e se ouviu um suspiro de admiração. Riram excitadas, quem dentre elas seria a favorita? Mas Zé estava surdo. Os olhos presos nas gotinhas vermelhas, a alma voando longe. Maria do Socorro, cunhã menina que ele viu crescer. Lembrava ainda dos tempos em que ela mal lhe alcançava a cintura, quando Etevaldo, o pai, voltava bêbado e armava o bate - boca, Dona Martírio chorava e a palafita tremia. A curuminha assustada se refugiava na casa dele, o barraco era quase vizinho, ele considerado da família, a menina não percebia. Mas o fogo lhe consumia a vida, viu quando lhe cresceram os peitos, caroços de tucumã, que ele acariciava no sonho. Maria menina, de pele macia como terra fofa, com olhos de quem não sabia. Pensou no brinco balançando nas suas orelhas, no cabelo mais preto que a água do Negro, o desejo foi lhe subindo entre as pernas; era veneno que lhe apodrecia a vida.

Ali ele ficou até a vela derreter toda, o tremelicar do vermelho nos dedos sujos, o olho luzindo, a cabeça viajando no galope do sonho. Era um voar de passarinho que o coração ia junto atrelado, batia e resfolegava, o brinco tilintava e Zé cambalhotava na idéia, tiritava no desejo e arrepiava no corpo. Via Maria menina, macia e morena, toda nua e oferecida. E ele, pé ante pé que era para não espantar a lembrança do que nunca foi nem nunca vai ser, ia lhe levantando os cabelos, resvalando pelo pescoço e prendendo na orelha aquela cachoeira de sangue. E quando ela balançava a cabeça a alma dele derretia e ia escorregando toda, luscofuscando perdida, o mundo ia embaçando e a menina virava raio de luz. Como quem reza para o santo com reverência de beato, ele estendia a mão e tentava tocá-la, mas ela sumia, desaparecia, e ele com a mão no ar, vidrado de amor. A lua veio e foi embora, o dia chegou rompendo claro, Zé ali estremunhado. A cabeça caída sobre os braços suados, a mesa perneta, o caixote velho, as mulheres mudas pelas paredes e ele cavalgando o bicho desembestado da sua historia encantada, da sua Maria, morena e macia.

O dia já estava caindo quando ele viu Maria voltando, passou na sua janela, e dali pra dentro foi um pulo. As mulheres na parede, caladas, testemunharam seu riso aberto quando Zé lhe mostrou os brincos. A menina deu um suspiro fundo, o vermelho lhe refletiu no olho e ela estendeu a mão. Zé viu o arfar, o peitinho subindo, as gotas de luz presas nas orelhas, o balançar da cabeça, lágrima de rubi, e quedou-se parado, suspenso no ar, quando a boca rubra e macia lhe deu um beijo no rosto, um obrigada e se foi.

Aquele dia e os seguintes ele desvairou. Via Maria por onde olhasse, com aquelas orelhas tilintando e escorrendo as miçangas, rubi perdido nos cabelos, o sonho lhe deu asas e ele voou. Corcoveou no desejo por Maria menina, santa de andor, macia e nua; via Maria anjo, anjo Maria. Roçava os dedos na sua pele, as orelhas tilintando vermelhas, cascata de pecado e de fogo, fogo que lhe estorricava a vida, febre que lhe queimava as partes, fazia a língua grossa, pegajosa. Maria menina, lhe ardia inteira, cavalo branco escoiceando o corpo, boca de beijo, virgem santa, Santa Maria. No esvair da paixão, peitinho de tucumã, piar de passarinho, Maria batia asas, penugem morena entre as pernas, rios lhe saiam pela boca, cabelos girassóis, dentes brancos muito brancos mastigando a alma, relampejar de vermelho, gota de sangue na orelha.

Uma noite, em que a lua clareava tudo, e o calor alagava os lençóis, Zé acordou com um sussurro, um gemido afogado. O que era aquilo no meio do mato, que bicho rondava no escuro, lugar de destino pobre não costuma ter dessas coisas. Sem barulho levantou-se, algum vivente estava por perto; com o cabo da faca firme nos dedos saiu e caminhou sorrateiro investigando os arredores. Foi quando viu, embaixo da lua cheia como aparição de visagem, Maria e o namorado, embolados, ela gemia, ele arfava, a menina luzia nua e branca, e o homem se derramava. Zé tiritou e ficou olhando, cabelos de girassóis, peitinho de tucumã, rios vazando da boca, gemidos de ai meu Deus. Saliva de beijo lambido, mãos peludas lhe escorregando o corpo, o mundo partido em dois, duas coxas abertas, fendidas, feridas, dentes brancos muito brancos sua Maria menina, Maria santa, Santa Maria. No debater do arrepio ela virou a cabeça e Zé viu o vermelho, a miçanga tilintando na orelha, cachoeira de fogo e pecado.

Foi tudo muito depressa. A faca entrou macia nas costas do homem. E quando Maria entendeu seus olhos se arregalaram e a língua lhe grudou na boca. Zé delicado e sem pressa, quase pedindo licença, lhe enfiou a faca entre os seios, peitinho de tucumã, cabelos de girassóis, abriu esguicho de vida, sangue e miçanga tremendo, gotinha tremeluzindo, espuma escorrendo entre as coxas.

Maria minha Maria, mistura de anjo menina, peitinho de tucumã, sangue brilhando no peito.

Vera do Val

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