Medo do desconhecido
Por medo do desconhecido, temendo encarar o novo, com respeito à rigidez dos hábitos antigos, Feliciano morria de medo de morrer.
Driblava a morte de todas as maneiras. Precauções não faltavam. O armário do banheiro mais parecia uma farmácia. Se o infeliz espirrasse, um espirrinho de nada, corria e: vitamina C, chá de alho, escalda pés, inalação e por aí afora.
Para atravessar a rua olhava de lá pra cá, daqui pra lá, que quase caía de tanta zonzeira. De carro não viajava:
- Deus me livre! E se,de repente, estoura um pneu...
De avião nem pensar:
- Não sou doido! Despencando, não sobra ninguém...
De trem, nem de pileque:
- E se o bicho descarrila?
De navio só se de vez perdesse o juízo:
- Não sei nadar!
Também pudera, jamais vira o mar, entrara numa piscina ou se aproximara de um rio.
Nunca subira num cavalo, triciclo ou bicicleta:
- Às vezes, um tombinho de nada, mata...
Não dormia sob quadros ou prateleiras:
- Vai que me esmaguem a cabeça...
O gelado não tomava, nem pensar:
- Uma laringite pode virar um reumatismo infeccioso, que pode atacar o coração!
O quente, também não:
- Se pego algum vento, me entorta a boca!
Mesmo com o calor da cidade - norte do São Paulo -após o banho, vestia o casaquinho marrom e saía -só depois de um bom tempo, é claro- suando que dava dó!
- Tenho de fazer hora para a devida ambientação do corpo, ora...
Todos os dias, lia e relia o obituário. Fazia cálculos. Se um defunto tivesse a mesma idade que a dele, não havia jeito, já se punha a sofrer dos males que levaram o pobre ao óbito.
Durante as chuvas, padecia, o coitado, com o terço nas mãos, andava pela casa feito alma penada! Orava e acendia palmas bentas, suplicando a Deus, que o livrasse dos raios. E a cada clarão, gemia pelos cantos.
Numa noite, durante um sonho, viu-se morto. Surpreso, nem lhe pareceu um pesadelo. Achou lindo o lugar. Tudo tranqüilo, não havia novidade, doença, acidente, violência. E mesmo que houvesse, não os temeria, já estava morto. O novo deixou de ser novo. O novo estava dominado, ali, exposto, sem mistério.
Ficou encantado com a idéia de viver a morte, sem o constante medo da morte em vida. Adorou a experiência:
- Morrer é bom!
No dia seguinte, ao acordar demorou-se um pouco mais para sair da cama. Lembrou-se do sonho e concluiu que não tinha motivos para temer a novidade da morte. Constatou que já perdera boa parte da vida, fugindo de tudo e de todos que pudessem levá-lo até a ela!
- Que bobagem! Doravante, viajarei de carro, trem, navio e avião; vou andar nu, descalço, de patins e bicicleta; tomar chuva, gelado e quente; dormir sob coqueiros carregados de grandes cocos...enfim, viverei... farei tudo o que até hoje não tive coragem! Acabo de nascer!
E, sem compromisso com os antigos cuidados, liberto, saltou da cama. Seu pé deslizou pelo macio do tapete. Feliciano escorrega, cai num baque surdo, bate, fortemente, a cabeça na quina da penteadeira. A queda foi-lhe fatal! Morreu! Ali mesmo, em sua mesmice. No mesmo chão, no mesmo quarto, na mesma hora onde, tardiamente, acabara de nascer!
Maria da Graça Almeida