TOWANDA

Aos passageiros que pretendam embarcar neste trem, informação relevante: se conhecerem e tiverem digerido “Tomates Verdes Fritos”, a viagem poderá ser melhor.

Eu não havia percebido de imediato. O único lume era o dos personagens movendo-se à minha frente, eu não havia percebido de imediato os olhos em esguelha, algumas poltronas ao lado. Certamente observava minha frouxidão, a sensibilidade liquefeita brotando do interior das pálpebras, a umedecer o rosto. Lágrimas absurdas. É apenas um filme, e homem que é homem... Estes olhos me conhecem? Obstruir as gotas descendo, por via das dúvidas. Mas como fechar os olhos a um enredo tão bem narrado?

Só enxerguei essa curiosidade alheia quando, como se fora janela súbita e aberta para o meu jardim, descobri que o trem não era uma locomotiva arrastando vagões, apenas: antes, alegoria pertinente ao tempo (esse manobrista da existência humana) e do quanto somos passageiros. Felicitei a mim mesmo, quase me abracei, santa perspicácia. Pois foi nessa hora, mesmo a euforia discreta faz o corpo se mover, foi aí que percebi no par de olhos um farol. Estremeção. Dalguma forma eram-me familiares, sobretudo porque... Sorriam de mim naquele escuro azulado? Da minha reação quase infantil frente a “Tomates Verdes Fritos”, choro retraído e suposta descoberta? Murchei. Sinto-me ridículo, não quero mais ver a mesma graça na metáfora contida na estória dos patos no lago, uma das preferidas de Idgie.

Eram olhos idosos, espertos, masculinos, sem rosto definido. Soltos e estáveis, planetas gêmeos num universo microcósmico. Quem seria este velho dos infernos? Ah, se eu pudesse ali mesmo fazer dele churrasquinho... A vontade foi levantar-me, cólera, indicador em riste. E gritaria para todo o cinema ouvir, inflado pela desnudez emocional. Até os personagens daquele mundo retangular e projetado interromperiam por instantes suas funções no enredo ao qual pertenciam. O xerife Curtis Smoote provavelmente me daria conselhos, testa franzida.

Todos seriam ouvidos de mercador, na verdade. Porque as poltronas vazias, como se jamais houvesse viva alma sentada nelas. Silêncio tão profundo quanto o sentimento de amizade que uniram Idgie Threadgoode a Ruth e Ninny (Idgie envelhecida?) a Evelyn Couch. Entretanto... esse abismo construído pela ausência vem de onde, se há pouco havia muitos lotando o cinema, vagos sussurros e interesse pela belíssima estória? Nunca soube. Porém, uma certeza: estava diante da reinvenção, no plano real, da cena em que Ed Couch não escuta o suposto trem percorrendo Whistle Stop, cidadezinha do Alabama, mas sua esposa ouve claramente.

Durante o intervalo de tempo em que fui engolido pelo constrangimento e pelo desequilíbrio emocional, das cenas finais apenas relances. E vultos coloridos, e áudios inaudíveis. Como se muitíssimo longínquos, a quilômetros. Talvez tenha testemunhado algo como uma falsa morte de Ninny e Evelyn explodindo em felicidades pelo maravilhoso equívoco; o sumiço da casa; a lápide, sepultura de Ruth. Vi mesmo? Não sei, preocupado com o surrealismo que me abraçava. Sobem os créditos na tela, tento descobrir as roteiristas meio às letrinhas. Inútil. Sem mais tardança, as luzes internas acordarão do sono que dura pouco mais ou menos duas horas, verei quem afinal me impediu de assistir, tranquilo, ao término de “Tomates Verdes Fritos”.

E a luz não se fez. Ao menos enquanto estávamos lá dentro, eu e o senhor dos olhos. Os espectadores da próxima exibição já deveriam ter adentrado o recinto. Cadê? Ficamos a sós, eu algemado pelos nós que ele me pôs, voluntariamente presos naquele buraco negro, e a nossa conversa. Até hoje ela parece não ter chegado a termo, se ainda nos dias de agora apenas suponho a identidade do homem para quem narrei um bom retalho de minha vida. É o filme que inda não acabou para mim; é a ausência do cadáver de Frank Bennett, cuja morte ninguém pôde comprovar.

Levantei-me tão decidido quanto Smokey Lonesome ao impedir o rapto do filho de Ruth pelo pai. Careta de mau, braços cruzados no tórax, ar pelo nariz como se fora algum touro em arena irritado. Estarei ameaçador? O velho riu profundamente. Humilhantemente.

— Onde está a piada, cidadão?

— Só falta você gritar “towanda”, Evelyn...

— O senhor tenha mais respeito por quem nem mesmo conhece!

— Esqueceu, menino? Você conseguiu metamorfosear, radical, minha biografiazinha até então sem cores vibrantes. Desde a sua infância... Seu comportamento longe dos padrões sociais a princípio me incomodava, tentei ensiná-lo a ser bem aceito... Mas se deu o avesso: fui eu quem aprendi.

— Isto é loucura! Vou-me embora, tenho mais o que fazer!

— Não, não tem. Observe em torno, menino. As cadeiras todas quebradas, teto autorizando passagem à água da chuva, fezes, rachaduras e buracos por todas as paredes, vômitos, os ratos, urinas, teias. Há várias décadas a cidade é mausoléu.

— Estamos em plena capital, meu senhor!

— Estamos em plena Whistle Stop , meu menino.

— Mas isto é ficção!

— Tem certeza? E esses trilhos aqui no chão do cinema, dizem alguma coisa a você?

Aproximou-se sem nenhum alvoroço, cabisbaixo, sorrisos, a gritante calvície, cigarro de palha apagado no canto da boca. Encararam-me seus olhos verdes-marinhos, mergulhou profundamente em mim até às regiões abissais. Não pode ser! Meu avô, ele evaporou mundo afora quando eu ainda moço. Dizem, vá lá saber, seu corpo foi encontrado numa linha férrea, tronco aqui, perna ali. Aos poucos, à proporção que media seus traços fisionômicos e os pesava com minhas lembranças, a poeira levantada pelo vendaval do susto foi assentando. De repente, alma é tranquila. Até parece entendi o que se passa.

— Sabe, menino... há uma vida lhe procuro porque necessito paz. Considerei-me maduro o bastante para o mundo, quis abraçá-lo. E pô-lo no bolso. Mas ele me fritou, eu estava verde. Muito verde. Ferido, morto, torto, lembrei-me do meu professor: você. Por favor, meu neto, conte-me alguma passagem de sua vida que não pudemos viver juntos. Certamente crescerei mais um tanto.

— Está bem. Sentemos.

— Obrigado.

— Há muitos anos atrás, meus talvez treze o quatorze anos, vovô. Bonachão, o vício de picar fumo, roupas sociais sempre impecáveis, couro legítimo nos sapatos, um tormento nos olhos verdes que nunca consegui descobrir. Porque magistralmente disfarçado. Mas estava lá, cristalino, na íris.

— Eu sei...

— Naquele dia o céu brotara alegre, luminoso, e vovô resolveu abandonar a todos, inclusive aqueles que o amavam. Como eu. Durante largo tempo, frio e neve em minha vida. Por qual razão ele fez isso comigo, Deus? Jamais obtive resposta às interrogações, desisti. E passei mesmo a desconfiar da divindade, cortei relações com ela. Talvez instrumento psicológico de auto-preservação, quis arquitetar um embuste: fazer de conta que ele, vovô, nunca existira. Mas é impossível arrancar as rubricas que ficam em nós do outro. Esperei a primavera.

— E ela chegou?

— Nunca. O outono, no máximo. Quantas folhas secas sobre minha cabeça, tantas passaram correndo por mim como fugitivos desesperados. Muitas vidas retorcidas e disfarçadas de árvores eu testemunhei nas paisagens em que vivi. Enquanto aguardava por ela, esperançoso, inconscientemente fui construindo aos poucos minha primavera nas entranhas do inverno. Não, não decorei as paredes do quarto com rosas e flores recortadas de revistas, como Ninny, se é isso que o esgar soberbo dos seus lábios está pensando. Explico: antes, meu passatempo era o pôquer com vovô, hoje talvez você; depois o abandono, essa categoria específica de morte, me fez abrir covas, plantar as sementes que encontrava no vento. Descobri belas espécies adaptadas à ausência de calor. E, à medida que meu jardim se exibia, coquete, novas pessoas se aproximaram. Abelhas atraídas pelas flores. Queriam amizade, elas. Fragilizadas. Algumas mortas, semelhantes ao senhor. Mas sempre na expectativa da ressurreição. Semelhantes ao senhor?

— Eu... eu... Você é muito outro, diverso do menino que conheci. Está mais lindo, mais vivo... Obrigado pela esperança. Perdoe o desconforto, a risada, tê-lo chamado Evelyn... É que a vida sempre foi para mim uma lição difícil de aprender, muitas nuances.

Mordeu o lábio inferior, respiração funda, os olhos verdes iluminados. Beijou meu rosto, Deus abençoe, ergueu-se, é hora de ir. Lentamente sumiu escuridão adentro, seguindo os trilhos ao som típico da locomotiva. Terá sido mesmo vovô?

Eduardo Selga

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