O homem na chuva


“ ‘a casa não é tão grande ‘ - pensou. ‘Aumentam-na a penumbra, a simetria, os espelhos,  os muitos anos, o meu desconhecimento, a solidão ‘ “ Jorge Luís Borges in “A morte e a bússola “


I

        Os pés lutavam contra as poças d'água no meio da rua. Noite fria. Céu nublado, escuro. Parou no telefone público, discou um número e ficou esperando que alguém atendesse. Nada. Colocou as mãos no bolso e revirou o troco do bar. Olhou para a rua vazia e molhada às três horas de uma madrugada nublada. Parado ali no meio do planeta, na chuva, mãos no bolso, pensou na palavra plâncton sem saber o porquê, talvez a memória dos anos de biologia na faculdade. Continuou andando sem rumo. Sapatos pesados e molhados. Cruzou com um vigia que o examinou longamente antes de continuar pedalando a sua bicicleta.
        Dali da esquina podia ver um pedaço do velho casarão abandonado. Acendeu um cigarro amassado que encontrou no bolso interno do paletó. Olhou em volta e percebeu como lhe era estranho aquele lado da cidade. Mais uns passos e pôde ter a visão completa de um casarão de paredes escurecidas pelo tempo e jardim descuidado com teias de aranha entre as árvores. Um cachorro, doente e velho, cuidava solene do portão enferrujado.
        Sentiu na boca o gosto amargo de gim que o garçom lhe servira no bar. Apalpou a roupa molhada e atravessou a rua em direção ao portão. O cachorro levantou as orelhas e tocou os seus olhos nos olhos daquele homem perdido no planeta às três horas de uma madrugada nublada. Velhos conhecidos. Talvez outros dias, outros anos. Familiares roupas, pêlos, orelhas, olhos, patas, sapatos. O cachorro apoiou a cabeça entre as patas assentindo a sua entrada.
         Empurrou o portão com a mão úmida. Seus dedos enroscaram-se nas grades enferrujadas causando um pequeno ferimento no dedo indicador. O jardim - troncos cobertos de musgos, ervas daninhas, folhas caídas no chão - estava escurecido pela chuva. Um cheiro bom de húmus. “Terra fértil, mas abandonada “ pensou clinicamente. Olhou o ferimento, limpou o sangue com a língua e passou a mão pela roupa. Continuou caminhando por uma estradinha gramada que levava até o casarão. Por alguns momentos observou seus passos, os sapatos molhados pisando a grama, esses movimentos involuntários e inconscientes de dias comuns. Os pés pararam repentinamente. Os olhos procuraram algum sentido para o ato e depararam-se com o casarão. A porta entreaberta, foi empurrada pela mesma mão úmida que tocou o portão. Entrou. As paredes enegrecidas guardavam a história de seus antigos habitantes. Czares, aristocratas, mendigos, barões, bêbados. Por segundos acreditou ouvir vozes, sussurros, passos. Olhou em volta e não achou nada. O cão apareceu. Cheirou seus sapatos, embrenhou-se no escuro e voltou, em seguida, para ficar alerta à porta.
        Os olhos, que se acostumavam com a escuridão, divisaram uma escada antiga, larga e suja. Com a mão - e depois o braço inteiro - num pequeno instante de sufocante desespero, tateou as paredes em busca do interruptor de luz. Nada. Procurou, então, no bolso traseiro da calça molhada o pequeno isqueiro de prata com seu nome cravado. Sentou-se num degrau e olhou detidamente a enorme sala parcamente iluminada pela minúscula chama. Perto de uma grande janela sem vidros uma cadeira esperava por alguém que quisesse observar, ocultamente, o jardim. A janela estava sem cortinas, que certamente eram azuis como o papel de parede descolorido. A observação foi interrompida pelo sobressalto. Um rato pulou sobre seus sapatos e o desafiou com um olhar túmido. Seu terror jogou o rato longe. Pôde ouvir o barulho do pequeno roedor batendo contra a parede.
        Tocou com cuidado os pés nos degraus daquela escada, que em dias de glória já fôra forrada por um tapete azul com pequeníssimas flores amarelas salpicando os pêlos. A cada degrau um ranger que assemelhava-se a sons de dentes humanos raivosos. A escada dava para um imenso corredor. Escolheu o lado esquerdo e seguiu. Ali a casa parecia intacta. Surgiu a primeira porta. O suor escorria por seu rosto. Aquela porta azul, extremamente familiar. Abriu-a lentamente e a claridade excessiva o cegou. Sumiu o chão e o tempo.


II

        Um boulevard. Inexplicavelmente ele estava no meio de um boulevard. Pessoas transitavam apressadas. Entrou num bar e perguntou que horas eram. Um homem alto e jovem disse-lhe qualquer coisa numa língua estranha. Olhou em volta intrigado. Alguns estivadores conversavam com uma mulher de cabelos grisalhos e muito magra que estava algemada. Eles riam muito e alto. Crianças vestidas com quimonos coloridíssimos estavam junto à porta, como numa vitrina. No extremo oposto duas mulheres, deitadas sobre a mesa, beijavam-se sob o olhar patético do dono do bar, um italiano gordo e de pêlos que lhe saíam pelas narinas. Os aplausos do velho interrompiam a cena de quando em quando. Apenas o gaiteiro notou sua presença e aproximando-se disse, quase num sussurro, que aquele era um lugar muito, muito distante.
        Voltou à rua assustado. Deparou-se com uma vitrina arredondada onde havia uma cama vazia de latão reluzente. O colorido dos lençóis agrediam seus olhos. Esfregou-os. Ao voltar-se um casal estava em cena. Vagarosamente a mulher despiu-se. O homem, pequeno e musculoso, beijou-lhe os seios e passeou com a língua pelo ventre até o púbis. Em desespero crescente olhou ao redor. Ninguém notava a presença daquela vitrina e seus personagens. Uma senhora parou, puxou-lhe a manga da camisa e pediu informações sobre uma loja de imagens religiosas. O horror de seus olhos estupefactos afugentaram a mulher. Na vitrina o casal urrava de gozo. Os sons embaraçaram- se em seus ouvidos. E depois escureceu.


III
        Acordou no meio de um monte de folhas secas. O cachorro lambia sua cara tirando a fuligem. Percebeu que estava atrás da casa : nenhuma saída que desse para o jardim ou para a rua. Apenas uma porta pequena e cinzenta à sua frente. Virou a maçaneta e entrou num quarto úmido afastando algumas caixas de madeira podre. Uma adega. “Uma bela descoberta “- pensou com satisfação. Retirou o pó grudado em uma das garrafas e com a ajuda de um oportuno canivete puxou a rolha. Sentou-se no chão e bebeu grandes goles. Fechou os olhos e sentiu o gosto bom do vinho regando o corpo. Algumas baratas perambulavam entre pilhas de livros velhos. Com o pé esquerdo esmagou duas, franzindo a cara ao ouvir o quebrar de asas.
        A adega, na penumbra, não parecia muito grande. Esbarrou em um lampião e abaixou-se para pegá-lo. Uma mão tocou a sua. Inerte, conseguiu apenas constatar que era uma mão fria, grande e humana. Um animal começou a lamber seus sapatos e o lampião acendeu-se magicamente. Num sobressalto ele viu o rosto louco de um velho. Branco, grossas sobrancelhas e olhos arregalados que o fitavam em um tom azul. O velho lhe sorria com sua cara magra, a barba por fazer e os dentes que lhe sobravam. Estava feito o quadro : o velho com um lampião em uma mão e o cão, com cara de lobo, na outra. O animal rosnava e mostrava seus dentes misturados com a espuma da baba.
        O velho mandou que o acompanhasse. Logo depois da fileira de vinhos, que se espalhavam por estantes de madeira, entraram num túnel. Para seu estranhamento o corredor era de pedras que formavam desenhos primitivos e losangos desconexos. O chão coberto de pedregulhos. Nenhum ruído, além dos sapatos e da respiração do cão. A caminhada foi longa até chegarem a uma pedra alta e inclinada. O velho, como um capitão, subiu e ficou olhando para baixo. Em seguida estendeu a mão convidando-o. E lá estava: um abismo. Belo e escuro como todos os abismos. Numa corda esticada entre a pedra e o cânion, que se abria à sua frente, um homem equilibrava-se. Duas luas iluminavam o personagem.
        Ao perceber a presença dos dois, o malabarista sentou-se, cumprimentou o velho com um aceno enquanto descascava uma banana. Repentinamente começou a falar sobre o tempo. Relatou a última chuva de meteoritos e discorreu, em tom hermético, sobre um estudo que teria feito acerca da engenharia dos relógios no século XII. Mostrou-lhe também o seu que tinha um complicado mecanismo, fabricado com tecnologia suíça. O estranho homem, muito magro e de olhos rasgados, que equilibrava-se naquela corda em pleno abismo, perguntou-lhe se sabia há quanto tempo estava ali. O velho também fitava-o interrogativo. As palavras não saíam. “É sempre assim “ - disse o equilibrista - “Tudo cessa para dar lugar ao fantástico “. Dizia isto fazendo piruetas, ficando de ponta cabeça preso apenas por um pé e andando rapidamente pela fina corda esticada. “Um passo em falso...lá embaixo, nada. Não há tempo, eternidade, palavras. Apenas o silêncio do baque surdo e o ruído sutil do sangue escorrendo. Mas, do outro lado “- apontou para o cânion - “Passando vagarosamente por esta corda você estará salvo. Olhe para trás “disse de ponta cabeça entre gargalhadas. Olhou. Atrás de si havia desaparecido qualquer vestígio do corredor e da casa. Fitou assustado a corda e o vazio eterno. “A única saída “ - pensou atônito. “Vá “ - disse o velho entredentes.
        Pé ante pé atravessou o imenso vazio pulando sobre a cabeça do equilibrista que estava sentado na corda lendo um jornal. Quando colocou os pés do outro lado suava frio. Voltou-se e pode ver o malabarista que recolhia a corda e apagava com um sopro as duas luas. Como se não lhe faltasse chão foi ao encontro do velho e os dois sumiram na escuridão.


IV

        “Todo homem tem seu abismo particular“ - falou para si. Uma citação de um escritor alemão medíocre que agora soava pela vastidão de um cânion. Palavras para o nada. Sentou-se e deixou o vento forte desalinhar os cabelos. Adormeceu rapidamente. Ao certo não se sabe por quantas horas ou dias dormiu. Do sono trouxe imagens : repetidamente uma pessoa ou grupos de pessoas atiravam-se no abismo.
        Durante um dia inteiro não conseguiu levantar- se. O sol encharcava a sua roupa de suor. Depois de tentativas e tentativas, mudou a posição do corpo e acordou no meio da noite com o vento refrescando o organismo todo.
        Ergueu-se e, sentindo-se disposto, começou a andar. Percebeu que logo adiante, como num quadro de Dali, uma porta azul estava incrustada no nada. Abriu-a e pulou para o outro lado. Estava novamente na grande sala com a janela que dava para o jardim. A penumbra e o abandono eram os mesmos. Viu um vulto passar à sua esquerda em direção à outra porta. Apressou-se em direção àquela túnica branca que se perdia pelo ar. Tocou um ombro humano e uns olhos brilhantes voltaram-se para ele. Em punho o isqueiro com seu nome cravado e o rosto iluminou-se : uma bela mulher de longos cabelos, pele morena e nariz afilado. Num ímpeto pensou em beijá-la e pôde ver-se , como se fosse outra pessoa, neste exercício de sedução. Mas, nada aconteceu. Instantes depois estava na mesma posição anterior com o isqueiro aceso em frente àquela mulher que o fitava quase hipnotizando-o. Seguindo seu olhar, que se desviava para o lado oposto, observou que o cenário se modificara : uma festa, um ritual milenar de bruxaria, de lunáticos. A chama do isqueiro apagou-se.
        A mão macia daquela senhora de longos cabelos conduziu-o até o centro da sala, onde pequenas crianças finalizavam a pintura de uma mandala colorida com uma variedade de flores e desenhos estranhos de outras civilizações. Ali perto, como num transe, um grupo de mulheres dançavam em volta do fogo entoando incompreensíveis cânticos monossilábicos. Observou durante alguns minutos e esboçou considerações: talvez cantassem para os filhos que esperavam. Para aquelas estranhas criaturas que carregavam em seus úteros. E viu faunos e andróides e carros de fogo pelo céu. Que flores expressariam os dias, as horas que se passaram ? E uma chuva de lírios brancos caiu densa.
        Ele estava no centro da mandala e era observado pelos olhares atentos das crianças de caras sujas de tinta. O cachorro guardião, que anteriormente ele havia encontrado nos jardins da velha mansão, estava deitado no colo de um garoto que velava seu sono. Alguns riam em avassalador desespero. Outros fitavam-no como esperando alguma instrução, uma citação extraordinária, uma palavra que fosse. “Desire, madness, insensatezza, abîme “. Alguém ( não soube identificar) sussurrava em decibéis dentro de sua cabeça. As crianças aplaudiam com veemência.
        As mulheres dançavam em volta do fogo num ritmo alucinado. Homens de peito nú pintavam os braços como que se preparassem para uma guerra. No céu três estrelas intrusas criavam espirais que se multiplicavam em cores do espectro do arco-íris. A mandala iniciou seu movimento circular num desvario e, então, ele viu com clareza a extensão do cenário : do outro lado mulheres preparavam a comida misturando galhos e ervas em panelões; homens iluminados desenhavam com grandes troncos imagens para o futuro; um cão raivoso desafiava o xamã que trazia consigo a tocha de fogo para desbravar a noite. Um grito em meio às árvores e um clarão. Esquilos, lagartos, pássaros, porcos espinhos, sacis, elefantes, tamanduás, bichos da floresta em tremendo galope. Faunos com flautas e belos pêlos coloridos. O malabarista, o velho de olhos loucos, a senhora de longos cabelos num turbilhão de imagens distorcidas pelo vento e pelo medo.
        Então, ele atirou-se dentro do abismo de seu coração levando a alma indefesa consigo.


V
        Estilhaços ao redor do corpo : folhas secas, pétalas de rosas carmins, azaléias, memórias e inúmeras pequenas pedras. Sobre o chão azul da casa deserta e intacta o corpo de um homem. O cachorro, atento guardião das lembranças daquela velha mansão, farejou-o. Com sua língua cor de rosa, limpou o ferimento da testa do velho conhecido. O homem, aos poucos, abriu os olhos pesados. Cenas de sonhos milenares confundiram-se invadindo os mecanismos da cabeça, influenciando nos estímulos elétricos, nas mensagens para o corpo. A mão sem comando, como que guiada pelo destino, dirigiu-se à testa manchando-se de vermelho num tom quase magenta.
        Chovia. A parca luminosidade do dia invadiu a janela e esparramou-se por sua roupa amarrotada e encardida. Ele levantou e olhou ao redor. Tudo no mesmo lugar. O cão fitou-o e saiu em disparada. O corpo doía. Os sapatos estavam enrugados e os cabelos em desalinho. Abriu a porta e seguiu pelo mesmo caminho da noite passada entre o jardim abandonado. O portão estava trancado. O cachorro perambulava por ali sem notar a sua presença. Escalou, com dificuldade, os ferros retorcidos e caiu de joelhos, como um gato, na calçada. A chuva agora era uma fina garoa.             
        Pessoas passavam apressadas em direção ao trabalho, indiferentes à sua presença. Acendeu o último cigarro que encontrou, ao acaso, no bolso traseiro da calça. Ao levantar os olhos deparou-se com o vigia que voltava em sua bicicleta da vigília noturna. Cumprimentou -lhe com um leve sorriso de canto de boca. Sentou no meio fio à espera de um táxi amarelo que o levasse para casa. Um papel estranho, trazido pelo vento, colou-se a seu sapato. Uma foto : o malabarista e o cão em um picadeiro de circo. Uma estranha dedicatória e um nome de mulher. “ Beatriz“ - sussurrou . Um táxi parou, inesperadamente. Entrou no pequeno automóvel e recostou o corpo fatigado no banco macio. Enquanto explicava ao taxista o endereço observou pela última vez o velho casarão enegrecido pela chuva. O motorista, um velho de pele branca, barba por fazer e imensos olhos azuis, apenas olhou profundamente para seu rosto e sorriu.

Karen Debértolis

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