Kammy e a sede

               Kammy padecia por sede. Todos os dias, despertava com a garganta em fogo, o corpo em febre, os olhos turvos e rubros. Tempo houvera em que a sede parecia saciada e Kammy embriagara-se em refrescantes delícias, a fonte fora então manancial e oásis na pequena ilha de sua existência. Entanto, o que outrora fora palavra vida tornou-se concreto verbo, fez-se muro duro agreste e, áspero tomou forma de nada quando a sede chegou.

               Nos primeiros dias, não percebera o mal que a sede poderia lhe trazer, pensou que poderia conviver com ela, mas conforme as nuvens passavam e os dias sumiam ao horizonte, a febre chegou e não mais partiria. Veio então a época em que as lembranças saciavam... Até que os dias foram de tão feroz angústia que o azul vestiu-se em sombras e o pôr-do-sol feria o que outrora refrigerara a vida em suaves instantes. Kammy chorava e sorvia as próprias e salgadas lágrimas; de sal e pranto tornou-se e perdeu-se... Delírios, murmúrios e dor.

               Das coisas que perdera em si, já não sabia do que mais sentia falta. Primeiro foi o riso, parecia-lhe que a sede apreciava devorar a alegria e fortalecia-se com a tristeza mais tenra... Depois, foram os sentimentos puros, tudo que sentira de bom esvaia-se, evaporava no deserto que tomava-lhe a alma, havia agora como uma língua de fogo queimando-lhe o peito, doendo doendo e quando Kammy menos esperava, a febre voltava e seus olhos eram então insano rubi.

               Ah, os sonhos. Ela sonhava e nos sonhos, suas lágrimas teriam tocado o solo gretado acalentado vida até que fonte renascesse, era o que desejava com tal ardência que todos os dias buscava-lhe e, mais uma vez, naquela sombria madrugada, arrastou-se pelo deserto dos dias perdidos, dos sonhos rasgados e vislumbrou o que mais desejava. Nas retinas da menina dos olhos, quebradiços sonhos que ainda permaneciam suspiraram. A fonte seguia seca, indiferente e não ousava deixá-la. Já sem lágrimas, Kammy sentiu que morrera enfim, de fato, morta estava a cada sentimento perdido, a cada dor vivida, apenas esquecida de como partir, Kammy morria morria morria... sem jamais conseguir morrer.

               Outros observaram de longe sua derrota, mas não compreendiam a sua dor nem porque ela que não seguira com eles, não sabiam que não poderia ultrapassar a fonte quem se esquecera de aprender a odiar, quem se esquecera de galgar as muralhas da indiferença. Ainda que seca, Kammy amou a fonte e, por ela, sofreria a sede ad infinitum.

Tânia Souza

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