EXUMAÇÃO

Finalmente!... Volto a ter vontade de rasgar os pulsos sem que o faça. Ficar inerte é mais pavoroso: é como estar enjaulado. O medo de sofrer ou de amar é sempre a recusa a uma entrega profunda. Anestesiei-me por anos em tarjas de inomináveis cores. Hoje resolvi deitar fora todos os comprimidos que me traziam uma calma alegria. Sinto que, com vagar, retornam vozes, fantasmas, vórtices e labirintos. Que bom perder-me novamente. Meu equilíbrio era tão-somente máscara sobre máscara, sorriso sob choro, mirabolantes planos inconcretizáveis para ocultar a incapacidade de atos simples. Ser um gênio de nenhuma obra parecia mais confortável do que um mediano fazedor de cotidianos gestos. Uma antiga lâmina de barbear... Algo do tempo do meu pai, guardado entre lembranças. Como se encontra o que não se deve nos momentos extremos! Aquela caixa estava no sótão do meu armário, como se fora, de fato, um cômodo de difícil acesso. Mas a adiada mudança era iminente, tudo já embalado. Aquela caixa... Um sepulcro violado. Por que se guarda o que se quer esquecer? E a compulsão em revolver lembranças vai ligando uma a uma das mágoas, um a um dos desatinos. Ao desfazer os laços de pequenos embrulhos, refaço os laços de redivivos pesares. Nada se perdeu, e como tudo o que é represado, explode em torrentes. As feridas não cicatrizam: são maquiadas pelo tempo, que esmaece a recordação, sem conseguir sepultar definitivamente. Me defronto com o cadáver de minha omissão. Exumação de inacabados propósitos, de pálidos intentos. De novo a lâmina desvia minha atenção deste inventário de perdas. Já não brilha, enferrujou, cogito esvair-me como fizeram meus projetos... a afiação se perdeu e penso que o corte não será suficientemente profundo... serei apenas mais um que tentou. E para colecionar mais uma deliberação inconclusa prefiro devolver tudo à caixa, que será lacrada e olvidada até a próxima mudança, sem que nada seja alterado. A casa vai se esvaziando, sento num canto como um objeto a ser transportado sob o olhar desdenhoso dos carregadores. Observo o nada se construindo, a poeira debaixo dos móveis se revela, como os entulhos que escondi em temores, como o que se calou, como o que se resguardou, como o que feneceu por inércia. A lágrima que percorreria os sulcos do tempo no rosto se recolhe, esperando a rendição que virá... a remissão que verá.

Gilberto Gouma

« Voltar