Em Carne Viva

Assim que soube da notícia:
— Ela acaba de entrar em óbito... — ele num pranto incontido, estalando os dedos, atirou-se no peito do sogro. Bastaram-lhe, porém, alguns minutos para que acendesse o cigarro:
—  Quero a minha Edilaine! Quero a minha Edilaine! —  e na sua neurastenia de viúvo, gritasse — Pelamor de Deus, doutor! Pelamor de Deus, a minha Edilaine não!
Na sala de espera da U.T.I. sua inconformidade rasgava o silêncio hospitalar e era escutado na mesa de carteado de um grupo de terceira idade, no outro lado da rua. O sogro ao contê-lo teve o bolso da camisa rasgado. Uma das cunhadas presentes sentou-se próxima. Devota de Santo Expedito, ela, debruçada sobre a calvície franciscana do cunhado, começou a rezar insistentemente o Credo para ver se conseguiria, por intermédio de oração, aplacá-lo:
— Acho que o caso é dar uma injeção de Diazepan — disse a enfermeira à sogra que, como em um estado de síncope profunda, repousara o corpo no corrimão e absorta, não mais correspondia —  vou pedir pro médico...
  Vários enfermos arrastando suas moringas de soros – alguns de comadres nas mãos – testemunhavam, atônitos, o comportamento eloqüente do desamparado. Ninguém compreendia o odor de nicotina que impregnava os corredores. Ademar, após a trágica aceitação da notícia, levantou:
— Agora ela se foi... — procurando a chaves do carro, continuou — Meu Deus, por quê Pai? — desprendendo-se da cunhada pediu aos presentes que não pronunciassem nada a respeito da morte da esposa — Por favor, mais nada...
Deu dois passos em direção a saída. Olhou para os demais. Antes de sair, segurava a braguilha da calça:
— Vou no banheiro e já volto — e caminhando rápido — alguém quer...
Não disse mais nada.

II

O hostil desgosto criava no pobre viúvo um pigarro mal expectorado, um genuíno pigarro de contrito. E em cada passo existia, além da peculiar mucosidade, o insofismável pavor de injeções. Bastava uma simples ameaça de agulha em sua retaguarda para que os pêlos da lombar se encrespassem. A vertigem, no entanto, durou o antagônico espaço de cinco minutos. Foi só testemunhar um paciente, no ambulatório, arregaçando a manga da camisa, expondo o antebraço cianótico, para que uma sensação nauseabunda o dominasse. Pigarreou.
— E como foi à cirurgia da tua mulher— perguntou o acompanhante de uma das colegas de quarto de sua esposa —  tudo bem com ela? — que acabara de encontrá-lo postado no corredor.
Não respondeu. O outro imaginando que indagá-lo não fora um bom negócio preferiu emudecer. Ademar manobrou os olhos, encarou a zeladora que com apatia lustrava o assoalho:
—  Onde fica o banheiro? — perguntou.
— Você desce a rampa — respondeu ela — vira a esquerda — gesticulou com uma das mãos — e quando chegar no final do corredor, dobra a direta. Numa portinha escrita ao lado da “Cantina” — apontou com o dedo — Não tem erro!
Compreendendo perfeitamente, Ademar encarou o enfermo que tomava a bela da injeção e sentindo arrepio nas entranhas não disse mais nada, apenas:
— Morreu... — ao mísero do acompanhante e continuou em passos lentos — morreu...

III

Frente à porta do banheiro, forçou a maçaneta. Percebendo que estava trancada,  numa euforia de necessitado, sentou-se em um banco próximo e aguardou. Os pigarros não cessavam, ganhavam certa força epidêmica e dominavam toda a influência da traquéia. Começou, então, a se entreter, numa legítima excitação, com os finos e rápidos polegares. Girava-os, um sobre o outro. O medo subtraíra as iníquas lembranças da morte da finada. Pensava nos polegares, na injeção, na vontade de fumar. Novamente tentou abrir a porta do banheiro:
— Já vai! — de dentro, gritou uma voz grave, quase de barítono — um instantinho só!
Não perseverou em abri-la outra vez. O silêncio do vazio era sua companhia. Macas e cadeiras de rodas abandonadas. A aliança no dedo se tornara à lúdica mania de seus minutos de tédio:
— Doutora Jaqueline — dizia a voz plástica dos alto-falantes — queira comparecer à radiologia! — e tornava a dizer — Doutora Jaqueline queira comparecer à radiologia!
Uma das lâmpadas se apagara, há muito ela ameaçava falhar. Ademar caminhava de um lado para o outro segurando a braguilha da calça. Tornou a bater na porta:
— É pra hoje? — perguntou ele.
Ao vê-la abrir se deparou com uma surpresa:
— Odair! — era o antigo vizinho de Edilaine, dos tempos de solteira. — Mas que surpresa? Seu te contar... Não, não, não que ótima surpresa! Minha mulher acaba de me dar um bacurizinho, acredita? — efusivamente falando — E você?
Sem respostas.
— Tenho que correr Odair e pegar minha mulher no quarto — disse o conhecido — mas apareçam! E manda um beijo pra Edilaine!
Ademar não respondeu, abriu a porta, entrou no banheiro. Quis falar alguma coisa, contudo, preferiu calar.

IV

Da privada, puxou a descarga, chacoalhou duas vezes e abotoou a calça. O ensandecido cintilar dos azulejos talvez o fizesse pensar: Uma bala na cabeça ou os pulsos completamente lacerados. Enquanto a água escorria pela torneira, uma coisa em particular e dolorida lhe atormentava os pensamentos: — “Como pode morrer de apendicite nos dias de hoje, como?”. Não pôde usurpar-se a um efeito de insatisfação. E continuou: — “Ninguém morre de apendicite depois da penicilina.”
Há duas semanas Edilaine, com fortes cólicas intestinas, reclamou de dores ao marido. Ademar correu, foram num Posto de Saúde e lá diagnosticaram: Pedra no rim, infecção urinária. A solução seria algumas mudas de quebra-pedra e cavalinha. Dias mais tarde a pobre da mulher, pálida e desidratada, entrava na fila de espera do Pronto-Socorro com vômitos e diarréia crônicos. Dir-se-ia que Edilaine morrera ali em meio a outros enfermos, aguardando vaga, mas Ademar, ao ver seu reflexo no espelho, não acreditava no que lhe acontecia e se desesperava.
— Por quê Edi? Por quê?
Procurou as toalhas de papel sempre expostas na parede. Não as encontrou. — Por quê meu Pai? Por quê você fez isso comigo? Edi! —  Secou as lágrimas na manga da camisa. — Quero minha Edilaine, Pai! Eu quero minha Edilaine!
E saiu, com raiva, batendo a porta.

V

— A Dolores quer sabê como tá a Laine — disse Edinéia, a cunhada mais nova, assim que ele pisou para fora do banheiro. — Resolvi não dizer nada ainda...
— Primeiro: Quem é Dolores? — perguntou Ademar — Não conheço nenhuma Dolores. — exasperado, Ademar contentou-se com um simples consentimento de cabeça. — Segundo: O que ela quer?
Edinéia lhe estendeu as mãos e recuou.
— É uma vizinha da mãe. Acho que veio cobrar uma costura que a Laine pediu... — respondeu a cunhada. — Talvez tenha vindo ver se tá tudo bem... 
Como só pensasse em sua finada esposa, Ademar conjeturou: — “O credor não dá desconto nem pra defunto que tá esfriando”. E colocando a mão nos bolsos:
— Quanto a Edi deve pra essa Dolores? — perguntou, já todo resfolegante — Avisa essaí que tô sem miúdo agora... Avisa lá, vai! E não diz nada do que aconteceu.
Edinéia, que se gabava de ter autoridade sobre os homens, rendeu o ânimo imediatamente à perturbação do cunhado. Até que chegou o instante de avisá-lo da transferência do corpo para a Capela Mortuária. No auge da animosidade, Ademar começou a socar o vazio. Edinéia, solicita, estendeu-lhe um copo d'água.
— Calma Ademar, toma água, toma! — apontou para o copo — você tá tremendo todo. Calma Ademar... — logo depois alisou seus ralos cabelos — Nós perdemos a Laine, mas eu tô aqui, eu tô aqui!
Neste momento, Ademar desabou no ombro de Edinéia. Acabava de soluçar, bradar, blasfemar... Dizer coisas que não são ditas nem quando se está embriagado. O pobre coitado amargava um sofrimento insólito, dantesco, sem misericórdias.

VI

A obsessão o sobrepujava. Pensava, respirava Edilaine. Quando a viu deitada, coberta com uma manta, obrigou a todos que estavam em plena vigília, na Capela Mortuária, a se retirarem. Queria estar só. Só com sua amada, uma última vez. Concentrou-se. Pouco-a-pouco foi dedilhando o rosto da falecida. Imaginou que ela abrira os olhos, mas não passou de uma simples impressão. Em seguida escutara uma voz lhe chamando.
— Quem está aí? — disse ele — Acho bom parar de brincar!
Houve um instante em que, segundo o próprio Ademar, Edilaine dizia que o amava. Ademar a descobriu, tateou as coxas de pálidas varizes. Arriou as calças e dedilhou a genitália da defunta. Ela parecia rir, gostar do prazer que sentia. O sogro que testemunhava por detrás da porta chamou os enfermeiros. Ademar era um apaixonado, um apaixonado de sua própria loucura.
Não demorou muito para que cinco homens o contivessem. Dois seguraram suas pernas e outros dois seus braços, enquanto o outro aplicava a famigerada injeção. O infeliz do viúvo se debatia:
— Já vou coração! — gritava ele — Me larguem seus...
Em pouco tempo Ademar estava contido e sedado.

Morte pela boca

Dias depois Ademar acordou em casa, atordoado, no seu próprio quarto. Percebendo onde estava se virou para o criado mudo:
— Edilaine! — gritou — Edilaine! — os gritos ressonavam pelos cômodos da casa — Edilaine! — e abriu a gaveta.
Na sala, parentes e amigos pensavam que o viúvo estivesse acometido pela loucura. Dentro da gaveta um antigo retrato de casamento. Ademar com zelo o manuseou e num ímpeto de fúria, lançando os travesseiros contra as janelas, chorou copiosamente:
— Que vai ser de mim, meu Deus? — de pronto, levantou-se da cama e nas roupas passadas dentro do guarda-roupa retira um revólver — Eu não vou aguentar! Pare, pare com isso! — introduziu o cano dentro da boca — Não vou te ouvir, chega! — tempo mais tarde ou pouco mais, um estampido.
— Ademar! — alguém gritou — Ademar, responde!
A porta estava trancada. Amigos e parentes, em uma comunhão de forças, meteram os ombros para arrombá-la. Choro, gritaria, corre-corre... Edinéia que tinha pressão alta quase enfartou. O tumulto se generalizou, vizinhos, cachorro, todos do bairro testemunhavam o novo cadáver:
— Ademar do céu! — gritava a sogra — Que foi que você fez, Ademar?
— Calma, Odete! — dizia o sogro ao vedar os olhos da esposa — Deus sabe o que faz...
Em um canto, Ademar, como se ambicionasse o vazio, esperava por sua amada. Edinéia pegou da cama o lençol e o cobriu. Pelos olhos, a lágrima lentamente escorria por sua face de pobre finado.

Diego Ramires Bittencourt

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