OITO HORAS EM PONTO
A luz do poste, cabelos escuros, rosto sombreado e a brasa do cigarro. Oito horas em ponto ele chegou.
Eu aqui espiando longe de mim, ondas batendo no lado vazio do peito, buraco rasgado onde ninguém chegará nunca mais never more corvos passeando pela areia, a vidraça pingada de chuva.
Oito em ponto. Mesmo horário, diante da janela, parado, não como quem espera, mas vigia. Observa. Não consigo ver seu rosto, parcialmente encoberto pela sombra, embutida na luz. Percebo que tem traços fortes, uma linha do queixo quadrada
Lembro de Mauro, lembro sempre de Mauro, o piano, Cole Porter, para onde vão as pessoas quando se despedem, quando a barca sai navegando na estrela, Mauro e o cigarro no canto da boca, o queixo quadrado, a boca macia. Mauro e as correntezas da paixão. Tinha uma lata de cerveja na cozinha, muitas latas, lixo do bêbado, Mauro e seu gosto de álcool, piano e corredeiras.
Uma semana e ele não deixa de vir. Oito horas. Em ponto. Acende o cigarro lentamente e espera. Ou não. Vigia, observa. Não há ansiedade de quem aguarda, não há ponte com algum futuro esperado. Um guerreiro estático, moreno
Mauro, boca vermelha meridional, olhos de brasa, olhos de alcoólatra, cervejas, latas, mil vestais vão abrindo as pernas lassas, eu me abrindo na noite estrelada onde a praia sumia viciosa, banal. Blues, Cole Porter, borboletas no estômago, você vem?
E o estranho sempre as oito, tranqüilo, parado, vigia da noite, coruja. Já me habituei a esperar sua figura alta, sob a luz do poste que agora mostra os olhos fundos, oblíquos (dissimulados?).
O olhos de Mauro, não, os olhos de outro, Mauro virou mistério, onde andam seus olhos, em que bar em que cinema te esqueces eu sei meu endereço
O estranho não perde uma noite, oito horas, não se atrasa, parado, vigiando. A mim? Ele não pode me ver escondida atrás da cortina, da vidraça, não pode ser. Mas é diante de mim, é em frente a minha janela, é escancarado sob meus olhos, mostrando aos poucos seu rosto, sob a luz. Não é o rosto de Mauro, por que Mauro voltou? Por que ele sempre vem?
Já me habituei às suas visitas que nada pedem ou esperam. Fica ali, sozinho, fumando, a brasa corrigindo a noite, temperando a escuridão.
Hoje ele me olhou pela primeira vez.
Levantou os olhos na direção da janela onde invisível espio. A cortina cobre minha ansiedade, ele não pode saber que estou ali, não poderia me ver, é impossível, deve estar olhando para outra janela, outra mulher, outras memórias, outros Mauros, outras praias, e blues.
Lentamente, ele tira o cigarro da boca e assobia:
Strange dear, but true dear,
When I'm close to you, dear,
The stars fill the sky,
So in love with you am I.
Desço a escadas em transe, atiro longe as lembranças, jogo fora a saudade: quem foi Mauro?
Às oito horas em ponto, renasci.
Maria Helena Bandeira