Quando as marionetes falam
1
Após vestir a camisa, as calças, ele sentando-se na cama, calça os sapatos.
A mulher à porta do quarto, observa-o. Calada. Integrada a cena repetida de todas as manhãs.
O homem se erguendo, despede-se:
- Vou lá! A obrigação me chama.
Ela prossegue silenciosa. Ele passa e cruzando a pequena sala, o terracinho, logo empurra o portão e ganha a rua ladeirada, já com outros trabalhadores que a descem, conversando.
- A situação do pobre tá cada vez pior cara!
- Eu nem estranho mais, me acostumei com tudo...
Vozes. Os passos que se distanciam, enquanto no céu, o sol esquenta.
- Bom... Deixe-me ir cuidar da obrigação doméstica.
Na cozinha, acende a vasilha com água e o feijão.
De uma casa vizinha, chega o grito:
- Vai te lascar, cabra safado!
A mulher sorri. E pensa, assim de repente, no marido. Ele anda meio estranho. Alguma coisa está acontecendo. Será que teme se desempregar? Pois, a fábrica voltou aos “cortes” semanais...
- Seja o que Deus quiser!
Exclama e desliga o fogão.
2
“Bate” o cartão e o repõe no quadro ao lado do relógio-de-ponto. Pensativo. Dando graças a Deus de ainda está empregado. Com esses “cortes” às segundas-feiras... Vence os degraus e segue com homens e mulheres que caminham em direção ao Grande Galpão, no qual ele tem a função de operador de máquina.
No céu, o sol vibra com a sua força de tudo iluminar, enquanto as nuvens brancas passeiam devagarzinho.
Os passos dos operários conversando se avizinham do Salão.
- Não dormi direito ontem, “encucado” com o “corte” de hoje...
- Meu, o que tiver de acontecer, ninguém evita. Melhor a gente levar as coisas pelo lado esportivo.
Os sorrisos. A equiescência. E adentram no ambiente com máquinas e trabalhadores em suas diversas funções.
Um dia, numa hora... Sente. Entende. Tem experiência como antigo funcionário da empresa, que ocorrerá...
- Bom dia.
- Bom dia Tonho.
Ele sorri e entra no compartimento onde trocará de roupa. Vestirá o macacão, de impressor da maquina “Onduladeira”.
Aí se ouve o grito da sirene anunciando o início de mais um turno de trabalho. Tudo normal, por enquanto, tudo normal...
Devagar veste o macacão azul, folgado. Responsável. Como uma marionete guiada por fios em mãos poderosas, no jogo do controle.
Agora, sentado na cadeira baixinha, escuta o trac-trac-trac cadenciado da máquina. Próximo, o seu auxiliar também com os olhos analíticos acompanha o funcionamento da impressora e, de repente, movendo-se rápido, se põe à frente da máquina e segurando uma das caixas que desce pela esteira, alerta:
- As cores tão desencaixadas.
Tonho então pressionando a tecla vermelha no mostrador ao lado, pára a máquina.
- Vamos resolver isso, Tapioca!
- Tudo bem, chefe.
As demais máquinas funcionam no matraquear repetitivo de todas as manhãs, tardes e noites. Os gritos dos encarregados coordenam as funções de imprimir caixas, as conduzir em carro-de-mão e as costurar em máquinas pedaladas.
- Pronto, o cilindro tá encaixado. Vou ligar a “bronqueira”.
Diz Tonho e pressionando a tecla amarela, faz a máquina trabalhar.
- Tá saindo correto o encaixe, Tapioca?
- Tudo “nos trinques”, chefe.
- Assim é que eu gosto de ver.
A preocupação mais uma vez. Repetitiva. Ameaçadora. Mas, o que tiver de ser, ninguém evita. Está resignado. Somos manobrados...
3
O silêncio do marido. O rosto pálido. O olhar fugidio. Os gestos lentos, como se policiados... Sim, aconteceu. Afinal, ninguém escapa ao que está determinado, acredita nisso. Somos uns bonequinhos, somos manobrados...
À porta da pequena sala conjugada ao terraço, ela está. Calada. Solidária. Companheira fiel de anos de convivência.
- Vai te lascar, cabra safado!
O grito vindo da residência circunvizinha, numa repetição.
Ele ergue o rosto e fitando-a sorri. Tristemente. Seus olhos estão?... Sem se conter, então, humana, a mulher se avizinha e lhe acaricia os cabelos ondulados, grisalhos, longos, nem gesto que diz tudo. Tudo.
Escuta um soluço?
- Tereza perdi o emprego.
A voz, num sussurro doloroso da verdade cruel.
- Sei, sei, Tonho.
A mão leve, macia. Fraternal. E o silêncio que os acolhe, numa compreensão.
4
Tonho está velho. De gestos lentos. Cautelosos. O olhar ausente. O alheamento a tudo.
- Não acho mais graça em nada. Perdi o interesse de viver... É a velhice Tereza.
Ela sorri, compreensiva.
- Mas, Tonho, têm idosos por aí que saem de casa, se destraem, não se entregam. “Curtem” a vida à sua maneira.
- É, cada um na “sua” (vê como a gente tá na moda? “Curtem”, tá na “sua?”). Tereza, ninguém é igual. Cada cabeça é um mundo. Cada um tem sua maneira própria de viver.
Silenciam. E ele, de repente:
- O que a gente passou... Se lembra daquela tarde que cheguei da fábrica desempregado e que fiquei aqui mesmo no terraço, na cadeira, sem conseguir falar direito e que você chegou e ficou alisando-me a cabeça, solidária?
Ela sorri e tenta fugir à recordação, ser apenas presente:
- Tonho, já basta de recordações dolorosas! O que passou homem, passou! “Bola pra frente!”.
A gargalhada dele e a conclusão a seguir:
- “bola pra frente!”. Eu não digo que estamos na “moda?”. Certo, Tereza. Tudo bem.
Desviam então os rostos, como se temessem num pudor, desnudar mais suas almas.
Sim, escondem-se. Inutilmente.
Paulo Valença