O MELHOR COLÉGIO DA BAHIA

                 Quando foi requisitado pela tia e madrinha para trabalhar como ajudante de porteiro no colégio de gente rica, classe alta na Orla de Salvador, Dedé tinha apenas quinze anos. Maria Angélica, a tal tia madrinha, morava na capital baiana há dez anos e muito amava o sobrinho e afilhado que viu nascer, melhor, ajudou o agora rapaz a vir ao mundo. Sua irmã, mãe de Dedé, morreu no parto. A criança ficara sozinha e nos primeiros cinco anos, Maria Angélica cuidou como se fosse seu filho. No entanto, assim que o pequeno ficou mais esperto, a tia contou-lhe toda a verdade. Dedé sabia ler e escrever; não tinha, entretanto base gramatical, separava sujeito de predicado e comia ou acrescentava letras às palavras indevidamente, transformando-as em algo que não era nem uma coisa nem outra. A intenção de Maria Angélica era colocá-lo entre os estudantes daquele grande colégio no qual ela era secretária do diretor mas a idade avançada de Dedé não permitiu que ele se misturasse entre os alunos de quinta série, esses na faixa de onze e se muito, doze anos. Disse-lhe o diretor que a presença dele na sala de aula levaria constrangimento aos mais novos e a ele mesmo. Comprometeu-se o próprio diretor a tomar-lhe a lição três vezes por semana e para isso Dedé teria quatro horas de aulas, divididas em duas sessões, às segundas e aos sábados.
                 A função que cabia ao garoto era simplesmente prestar a atenção nos crachás dos estudantes quando se adentravam no estabelecimento educacional. Não era permitido o acesso às dependências da escola sem o crachá e vez por outra havia esquecimento e troca do documento entre os colegas. Como não era permitido, Dedé então teria que ficar de olho na foto e em quem carregava a insígnia diferencial no peito. O porteiro titular era o senhor Sílvio, a quem os alunos, com a intimidade da convivência diária apelidaram de “Aranha”. Já com cinquenta e cinco de idade e a aposentadoria a coçar seu pensamento, Aranha não enxergava direito.
                 Do lado de fora da escola, ficava Lulinha das coxinhas. Vendia coxinhas de galinha caseira aos estudantes, e só fiava, para depois cobrar sua mercadoria, aos ricos efetivamente. Do outro lado, Alemão, era um com a cara vermelha. Provavelmente do sol, pois andava de um colégio a outro, havia três nesse trecho, vendendo picolés. Os outros meninos que estudavam em colégios públicos e eram pobres e negros, rodeavam os colégios dos ricos e criavam rixas de todo o tipo. Mas brincavam e jogavam entre si, os pobres, os pobres negros e os ricos. Havia em algumas modalidades, vantagens distribuídas. Por exemplo, havia um menino pobre que nunca perdera uma só partida de buraco de gude. Era um negrinho mirrado e vivaz. Saia sempre com o dobro ou triplo das gudes que levava. Por outro lado, numa sala aberta à comunidade, havia jogos eletrônicos e os meninos ricos sempre levavam a melhor, evidentemente pela destreza e comodidade de ter em suas próprias casas aqueles brinquedos plásticos. Todas as segundas a algaravia do futebol tomava conta na entrada e na saída das aulas. Todos, pobres e ricos, discutindo futebol. Uma outra turma recolhia-se mais ao canto sob a grande copa de uma árvore. Eram diferentes e conversavam como adultos que não eram.
                 Aranha comentou com Dedé sobre um professor que todos respeitavam ou tinham medo, não sabia ao certo. Dedé estava ali desde o começo do ano e já durante as provas da terceira unidade tinha e fazia amizade com todos: professores, estudantes, as moças da cantina, os rapazes da limpeza, e claro, seus colegas porteiros, além dos meninos pobres que sonhavam estudar ali, mas não passavam do portão do grande estacionamento que ficava na frente da entrada principal daquele colégio de ricos. Ultimamente Dedé havia feito uma nova amizade. Conhecera um professor de Escrita Criativa do colégio público onde os meninos pobres estudavam. Esse professor pleiteou uma vaga no colégio dos ricos e conheceram-se na antessala do diretor. O professor não logrou êxito com a vaga, mas com a amizade feita, também passou a ajudar Dedé em suas lições semanais. O resultado desse empenho mútuo agradou muito ao diretor do colégio dos ricos, que assediava descaradamente Maria Angélica, a tia madrinha de Dedé.
                 Às vezes, Lulinha das coxinhas ficava impedido de trabalhar, pois cuidava de todos em sua casa, inclusive, a mãe que sofria de labirintite. Quando Dona Elvira sofria as crises do labirinto, Lulinha ficava em casa e o irmão mais novo do vendedor de quitute, Fábio, de treze anos, era quem se apresentava à porta do colégio de ricos para vender. Fábio deixava de ir à escola dos pobres para vender as coxinhas de galinha que Dona Elvira ensinara a Carmem, irmã de Lulinha e de Fábio, a fazer. Fábio fez uma amizade perene e sincera com Adriano da sexta série e que tinha doze anos, filho de um deputado federal eleito pelo voto dos mais pobres nas últimas eleições em Salvador. O pai de Adriano foi quem prometeu tickets no valor de uma cesta básica às famílias dos bairros mais carentes, digamos assim, de Salvador. Entre eles; o subúrbio ferroviário, São Caetano, Fazenda Grande, Pau Miúdo, Caixa D'agua, Cajazeiras, Bairro da Paz, Calabetão, Palestina e Cosme de Farias. O pai de Adriano só perdeu em votos para o bisneto de um ex-grande político, que governou a cidade da Bahia por quatro décadas. O pai de Adriano era do partido de oposição ao bisneto. Há quem diga que houve conchavos e tramóia política. Ninguém desmente essas palavras.
                 O professor que foi reprovado no colégio dos ricos e passou a ser mestre oculto de Dedé, tornou-se militante de uma frente anarco-comunista. Difícil foi explicar como tornar-se ao mesmo tempo anarquista e comunista. Mas o professor de Escrita Criativa foi um dos mentores daquele movimento. Recrutou colegas no colégio público, uma boa parte aderiu, pois moravam em bairros pobres e viam constantemente e in loco a condição em que as pessoas viviam e o que lhes eram oferecido. Os professores do colégio do diretor, que a cada dia intensificava o assédio a Maria Angélica, recuaram e foram tachados de pelegos. No momento da movimentação política e convocação dos docentes desse colégio, a zoada e balbúrdia que os professores da anarquia comunista faziam na orla de Salvador, onde predomina a classe média e alta, era impetuosa, frenética e violenta, lá em cima na sala do diretor, Maria Angélica sofria o ataque decisivo:– Vai dar ou não vai? Se não, arruma suas trouxas, as suas e as de seu sobrinho perebento–, o diretor encaixou até o último pelo da virilha.
                 Curioso é que, nos momentos paralelos e que se seguiram à manifestação dos educadores por melhorias e até segurança, ocorria numa sala de aula do colégio dos ricos um sério incidente. O professor sobre o qual Aranha comentara com Dedé a respeito de sua sisudez e seriedade ao conduzir seu trabalho, foi humilhado e agredido com uma cadeirada por um aluno da oitava série, filho de um desembargador. Dissera o agressor que aquele mestre tão trabalhador era simplesmente seu empregado e por isso teria que sucumbir às vontades e desejos dele, o pequeno patrão. Todo esse aparato lingüístico foi emitido na sala do diretor, logo depois que ele depositou em Maria Angélica seu caldo viscoso. O empregado, que não teve apoio do patrão maior, foi encaminhado a uma clínica com ferimentos na cabeça e a promessa do diretor em rever sua posição naquela unidade educativa, provavelmente ele não voltaria a exercer naquele estabelecimento a sua profissão, conseguida com sofreguidão e avidez em colaborar na transformação da sociedade. De fato os papéis estão transformados, foi o que lhe dissera o médico enquanto dava-lhe oito pontos na cabeça.
                 Do lado de fora, no mesmo dia e instantes antes ou depois do ocorrido com o professor empregado, a turminha que conversava como adultos e escondiam-se do sol sob a copa das árvores, passava de mão em mão e de boca em boca um cigarro torto que cheirava a mato queimado. Havia quatro ou cinco do colégio particular, dois intrusos pobres com a farda rota e um estudante de Publicidade, Propaganda e Marketing de uma faculdade paga, e um pouco mais velho, que era ex-aluno da casa e virava mexia estava embaixo daquela árvore curtindo o ventinho e a lerdeza da viagem que lhe tomava depois das baforadas. Em rapidez, os fumantes começaram a discutir entre si. Soube-se então que três dos ricos esbofetearam um dos rapazes com a farda rota e lhe tomaram o que restava no bolso para pagar os quatro tragos que dera. O que havia no bolso era uma borracha velha, um toco de lápis e um saquinho de amendoim. O outro que o acompanhava na empreitada ousada de misturar-se aos bons, prometeu que no dia seguinte distribuiria o geladinho que o irmão mais novo vendia para ajudar em casa e também para ele mesmo, o mais novo, comprar um caderno e um lápis. Safou-se, mas levou dentro de si a ameaça de voltar e cumprir o dito. Naquele instante ele pensou que voltaria, mas voltaria com a arma do amigo e vizinho Rubi para dar uma lição àqueles filhos da puta filhinhos de papai. Decidiu fazer como Rubi, em vez de usar, passaria a vender também.
                 O vento sopra a vida tão naturalmente que os fatos nos furtam a admiração e tudo se apresenta corriqueiramente aos nossos olhos. No entanto o ser humano é muito mais do que uma simples visão; é impregnado de significados. Fábio vendia as coxinhas que a mãe fazia e cobrava da mesma forma que o irmão mais velho Lulinha. Sabia quem comprava fiado e a esses o negociante de coxinhas, seja o mais velho ou o mais novo, sempre avivava a memória. Adriano e Fábio conversavam e riam muito. Adriano não entendia, apesar de desconfiar, o motivo pelo qual Fábio deixava de ir à escola para trabalhar. Constantemente perguntava ao pai deputado que respondia : – a vida é assim mesmo, meu filho, uns são beneficiados e outros não –. Naquele dia comum e normal como todos os outros, cheio de novidades repetitivas, Fábio descansou a assadeira com as coxinhas em cima do muro que dá entrada para o grande estacionamento da escola particular. Havia dito a Adriano que esperava Eduardo, um dos que se escoravam sob a copa da árvore. Eduardo não participou daquela negociação furtiva que os amigos tiveram com os dois gaiatos pobres. No entanto, estava embaixo da marquise da capela da escola namorando a filha de um famoso arquiteto. Prometeu à menina uma coxinha para atenuar a fome enquanto a aula não terminasse de fato; estavam no intervalo e uma boa parte da turma era liberada para lanchar do lado de fora, pois a cantina era gerenciada por pretos imundos. Era o que Eduardo e sua turma sempre repetiam nos corredores livres da escola particular. Fábio cobrou a Eduardo as quatro coxinhas que ele devia desde a semana anterior. Eduardo fez bico e renovou o pedido “quero mais duas, neguinho”. Fábio disse que não poderia vender enquanto ele não pagasse, eram ordens da irmã Carmem e do irmão Lulinha. Eduardo transformou-se e respirava ofegante. Falou friamente ao menino Fábio: ”quero mais duas, neguinho”. Fábio recusou-se a vender. Adriano reforçou a postura do amigo. Eduardo investiu contra Fábio, tinha algo luminoso na mão. Adriano tomou a frente e viu a barriga sangrar. Eduardo tomou à força a assadeira e com as mãos de sangue levou duas coxinhas. Um para ele e a outra para a namorada, que não reclamou, e comeu rindo dos dois pequenos. Fábio desesperado socorreu Adriano, correu e chamou Dedé. Dedé chamou Maria Angélica, que chamou o diretor. Este se apavorou quando viu de quem se tratava e o levou imediatamente ao hospital, dando ordens aos policiais da ronda que retirassem todos os ambulantes ao redor da escola; – o neguinho das coxinhas agrediu meu aluno, tome providências com ele –.
                 O estudante de Publicidade da faculdade particular tratou de fotografar os dois episódios portanto onde havia provas cabais contra os alunos ricos e delinquentes. Propositalmente provocou a ira dos estudantes envolvidos. Extorquiu dinheiro dos camaradas. O deputado fora de si, o que é perfeitamente compreensível, disse em voz alta na porta da melhor escola da Bahia: – paga-se caro para uma educação fraudulenta, paga-se caro para viver dignamente, paga-se caro para ter quem pense por mim e paga-se caro para ver meu filho esfaqueado por um moleque de rua, esfomeado que não deveria ter nascido... Tudo aqui na Bahia é um absurdo... – palavras do deputado.
                 Dedé olhava uma moça distraidamente, ela fez careta e cara de nojo para o ajudante de porteiro. Era Zélia, aluna bolsista, sobrinha de seu chefe na portaria. – Não se enxerga, não? Sou aluna, viu? – Aquilo deixou Aranha morto de vergonha. Pediu desculpas a Dedé e repreendeu a menina longe dos olhos das coleguinhas. Zélia todos os dias gabava-se às amiguinhas do privilégio de ser sobrinha do diretor. – Ele é um amor comigo, manda me chamar na sala dele e diz que vai me transformar na mulher mais bela da Bahia –. Ele realmente diz isso e, claro, sabemos que o diretor não é o verdadeiro tio de Zélia que tem quatorze anos e senta todos os dias no colo do diretor antes de ir para a sala de manhã cedinho.
                 Maria Angélica, sentindo-se repugnante e cheia de asco, chorava no banheiro. Só se entregara a um homem uma vez em trinta e dois anos de vida. Havia dois meses que namorava um peão de plataforma. Ele estava embarcado em alto mar e chegaria no fim de semana. Ela não se sentia mais mulher do peão. Não era justo. Não era normal. Maria Angélica esfregava a boca e cuspia com violência, nunca tinha imaginado que chegasse a tanto. Saíra uma vez com o diretor para almoçar e a partir desse dia os assédios começaram. Depois de quatro anos como secretária. Verdade que como secretária dele só dez meses, antes era o avô quem tomava conta da escola e não era assim, como agora. O avô era disciplinador, honesto e bom. Maria Angélica pensou até em pôr fim à sua vida.
                 Fábio foi detido e levado para a Delegacia de repressão ao menor infrator. Adriano suspirava. Teve sorte; era um menino saudável e forte, mas provavelmente teria que fazer hemodiálise no futuro, pois perdera um rim. O pai deputado pensou com ele mesmo: “o dinheiro que pagará a hemodiálise do meu filho será o mesmo que eu daria para as cestas básicas prometidas às famílias de monstros como o que deixou meu filho sem um órgão. Que morram de fome os miseráveis!”
                 Dois dias depois a manchete do maior jornal da Bahia estampava que um traficante de nome Rubi matara friamente a tiros três jovens da alta sociedade baiana. O delinqüente juvenil estava acompanhado de dois outros e um deles gritava em fúria: – minha borracha, meu lápis e meu saquinho de amendoim, desgraçados... – Aquele mesmo instante Maria Angélica servia novamente às sevícias do diretor, mas com uma tesoura repetiu, no melhor estilo de Grace Kelly em “Disque M Para Matar”, o ato derradeiro. Dedé corria assustado para salvar os estudantes baleados, sem êxito, e só Aranha viu a fuga de Maria Angélica pela porta lateral da escola. Aranha sabia de tudo e automaticamente, em conivência, fez vistas grossas para a fugitiva. Assim ele sabia que sua sobrinha ficava livre do iminente favor

Carlos Vilarinho

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