Dance-me até o fim do amor
Ele.
Por todos os séculos tem sido, este perigo, a aflição, andar nas sombras. Não sei o que é viver em paz, ter um amante com outras mãos, olhos diferentes, toque, sabor, emoção.
Ele me vigia nos desvãos da alma, me alaga, oceano sufocante. Mas quando o conheci tudo foi inteiro e leve.
Vampiros não se apaixonam dizia mamãe que amou papai a vida toda indiscretamente e sem pudor. O que ela chamava de paixão? Monogamia? Tudo bem, eu sempre odiei monogamia tanto quanto ela. Mas o amor é um vírus perigoso para nós, repetia abrindo os olhos vermelhos. Mamãe era bruxa da classe Medusa, paralisava vítimas antes de sugar. Também previa coisas. Pode ter sido a causa.
Nem chegou a conhecê-lo, morreu trespassada por uma estaca em Nova York muito antes de papai ter se envolvido com a deusa Laksmi indiana. Mas via coisas, queria me prevenir.
O amor não se previne, deveria acrescentar. Contraímos, nos infectamos, entra na circulação. Sangue. O que é o sangue senão canal de entrada, porta mortal para todos nós?
Saímos juntos para aventuras sexuais, sugando jovens de ambos os sexos e era divertido e banal. O perigo foi quando começamos a desejar apenas nossos jogos de paixão. Foi como um casamento, um ritual sagrado. Dance me the end of love. Onde termina o amor? Não sei, num gesto, um dia, o ano passado em Marienbad.
Quando olhei para ele, não era mais. Nunca fora talvez. Sai atrás de sangue, desorientada, perdida.
Ele me seguiu.
Não me deixou saciar a sede, me prendeu no porão, me estuprou, e, suprema humilhação, sugou meu sangue de Medusa.
Não posso mais voar sozinha, seus morcegos me seguem, a lua brilha apenas para iluminar meus passos. Tudo que pretendo é antecipado. Ele sabe, ele pressente, ele destrói antes de nascer.
Hoje, depois de uma orgia em Atlanta, meus algozes se distraíram e consegui sair. Ando nas sombras para que a lua crescente não seja cúmplice do meu perseguidor.
Acaricio a estaca que roubei há muitos anos, quando meus pais ainda eram vivos na América.
Ouço passos atrás de mim. Deve ser ele. Ele sempre descobre onde estou, não existe saída.
Mas eu sim. Sou Medusa. Paraliso um homem qualquer diante de mim, comando suas mãos, direciono a estaca. Antes que Ele salte para me salvar, a ponta aguda penetra no meu estômago com toda a força.
Ainda vejo seu olhar de desespero e humilhação entre as sombras da morte. Finalmente.
Dance me to the end of love.
Maria Helena Bandeira