Café, água e lembranças

O maquinista faz soar o apito, o trem entra na curva. A menina segura a locomotiva enquanto os passageiros se movem para a direita acompanhando o declive.

Um gigante desfaz os vagões, leva embora as cadeiras e a repreende carinhosamente por estar trafegando no corredor.

A menina nem liga, corre para o banheiro ao lado do quarto da tivó. Nos frascos prepara água colorida com aquarela, seleciona por tom. Depois coloca tudo na borda e admira seu arco-íris particular.

O quarto da tivó é o mais claro.

Também, ela passa o dia inteiro em casa. A tivó não ouve quase nada, é preciso falar bem perto do seu ouvido. E ficou completamente cega.

A menina é a única que não tem pena da tivó. Sabe que ela vive num mundo especial, das histórias que não pode mais ler e guardou na memória como uma imensa biblioteca.

Depois de viajar e preparar o arco-íris, senta na cama da tivó para ouvir as aventuras do gato de botas, da princesa triste e do vestido cor do céu. Mesmo agora que aprendeu a ler e pode dispor do tesouro guardado nas estantes envidraçadas, prefere escutar a tivó enquanto sua alma divaga.

O almoço é na grande copa e ela representa com Arminda a comédia de sempre: posso tomar café na xicrinha? Você sabe que sua mãe não deixa. Café só pingado no leite. Depois do fingimento, ela resmunga, prepara um café com água e açúcar.

A menina toma o café enquanto tira baforadas de um cigarro imaginário. Como a mamãe. Um dia ela também irá trabalhar, algo proibido e interessante que mantém todos da casa o dia inteiro fora. Menos a tivó que é cega e viaja como ela nos trens do corredor.

Pula da cadeira, quase derrubando a xicrinha, a voz reclamona de Arminda se perdendo na tarde.

Da varanda grita para o prédio em frente:

Mary Caaaarmooo! Mary Caaaaarmooo!

Uma cópia xerox de suas trancinhas e laços aparece na outra varanda.

Vamos brincar?

Carmencita as leva até a praça onde montam a cozinha com panelinhas e fazem bolinhos de terra para dar ao gato. Ele não parece muito entusiasmado, fica por ali cheirando a louça. Copinhos de plástico e uma jarra completam a mesa. Solenemente comem e bebem de mentira, depois limpam com as mãos e o avental.

Cansada, suja e faminta, volta para as mãos de Arminda, a feiticeira que irá transformá-la outra vez na menina de laços perfeitos.

Enquanto o café esfria na xícara, a memória passeia pelo tempo.

Pega o cigarro, olha o jornal: apartamento assombrado em Laranjeiras. Intrigada lê a notícia: no seu antigo prédio uma criança aparece e desaparece causando pânico entre os moradores. O mais espantoso é que alguém conseguiu com um celular fotografar a intrusa.

Na imagem tremida o fantasma tem tranças, laçarotes e nas mãos algo que ninguém conseguiu decifrar.

Mas ela reconheceu imediatamente:

Uma xicrinha de porcelana com café, água e lembranças.

Maria Helena Bandeira

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