O ABRAÇO DE ANA PAULA1
Bordando, D. Marieta pensa em sua vida e na vida do marido, Seu Ernesto, que está ali no terraço, na cadeira de balanço, silencioso, cadenciando-se, entregue ao seu próprio mundo. É, a velhice nos causa esse desinteresse por tudo... É como se já nos despedíssemos de tudo.
- E não estamos, aos pouquinhos, dando o adeus final?
Sorri por ter falado, exposto assim o que reflete em voz baixinha. Mas de um dia desses para cá, adquiriu esse hábito de dizer o que sente. Borda o paninho para a neta que virá da única filha, a Ana Paula. Ah, sua filha, razão de dar valor à vida, saber que sua existência não foi em vão, de si brotou a menina que hoje mulher, lhe dará a netinha.
Se o Ernesto ganhasse a rua, visse o que há lá fora! Ergueria o espírito, não se entregando a esse alheamento, contudo, é teimoso, protesta quando lhe sugere que deixe aquela cadeira, veja gente, movimentos.
- Não Marieta. Prefiro ficar aqui. Tenho até receio de sair e ser assaltado. Com tantos “trombadinhas” por aí!
- Tá. Tudo bem, você é quem sabe.
Então não insiste, pois é inútil sua sugestão para que o marido saia, veja o mundo de fora.
Assim os dias passam.
A cadeira. O mutismo. Os olhos na rua embaixo, com a praça defronte, maltratada, com um ou outro casal e meninos jogando bola. E os carros circulando-a, apressados, ganhando as ruas transversais. Assim até que os olhos cansados entreguem-no ao cochilo rápido, enquanto a cadeira oscila ao peso do corpo gordo, disforme pela idade.
A tarde envelhece. De uma residência circunvizinha vem à música “brega” do momento. A voz da cantora no ritmo até agradável de ouvir... Onde estará a Ana Paula a essa hora, no trabalho, ensinando, ou em casa, se cuidando para ser mãe? A barriga crescida. O sorriso no rosto moreno, de traços bem definido, bonito... Parecida com o pai, o Ernesto que na idade dela era um homem bonitão. Hoje... Mas, quem pode evitar os anos que tudo transforma metaforseando-nos?
- Errei!
Exclama, desfazendo com a tesourinha a pétala verde no caule com a rosa vermelha. Retorna a bordar a folha, que aos poucos é reconstruída.
Através da janela ao lado, as primeiras trevas da noite caiem sobre o telhado da casa conjugada, enegrecendo as telhas avermelhadas e desbotadas pelo tempo. Já então o rádio não mais toca. E um veículo cruza a praça em velocidade. Será que o Ernesto está cochilando, precisará de algo?
Devagar se ergue e em passos lentos encaminha-se à varanda. Cruzando o quarto, o corredor e à sala seguinte, para então adentrar no terraço.
Os cabelos alvos, ondulados. O nariz adunco. Os lábios finos cerrados. Os vincos acentuados da testa larga. A pele mais pálida. A respiração cansada. A imagem da resignação... Sensibilizada ergue a mão e com a ponta dos dedos enxuga as lágrimas.
- Pobre do meu velho.
Aí fica parada à porta que se comunica com a varanda. Sem ação, entregue ao que sente.
Lentamente a cadeira embala o corpo do idoso.
Na praça, embaixo, os globos dos postes que a contornam se acendem e os veículos passam de faróis acesos. E, de repente, tudo silencia, para acolher a noite, que tudo envolve.
2
Ana Paula dirige, chegando. O terracinho. O pai ali naquela sua cadeira preferida. A sua mãe ao lado. Seus velhos queridos pais! Ah, o que é a vida: saber que numa hora, um dia, se encontrará também assim. Mas quando essa hora chegar, sua filha já estará uma moça e, quem sabe? Também encontrar-se-á grávida, à espera do primeiro filho... Os caminhos da vida. As surpresas. A sucessão em tudo. Em tudo! Então, como se negar a existência de uma Força que tudo comanda?
Estaciona. Buzina. Anunciando-se.
Reconhecendo-lhe o carro, D. Marieta se achega ao parapeito da varanda e sorrindo, acena-lhe com a mão, saudando-a, enquanto Seu Ernesto desperta e se levantando também se debruça sobre o peitoril.
Ana Paula salta e bate a porta do carro, fechando-a.
Os pais esperam-na. E os passos ligeiros sobem os degraus do oitão, para serem acolhidos pelo casal.
- Era pra eu ter chegado mais cedo, mas o trânsito, como sempre, está horrível!
- Sei filha, entendemos.
- Pois é, pai.
Sorrindo ela se achega:
- Que bom saber que vocês estão vivos!
Com disfarce, mais uma vez a mão se ergue e os dedos nervosos enxugam a vista embaçada de D. Marieta.
Sim, a vida tem sentido. Quem pode dimensionar o valor de instantes como esses? Quem...
- Mãe!
Os braços longos então envolvem a anciã, no agasalho do aconchego.
Escondendo-se, Seu Ernesto foge o rosto de lado. Sensibilizado. Tudo entendendo.
Essa menina...
Paulo Valença