CONDENADO

João do Velho e José Reis olhavam o mar, no Mirante. Uma lancha branca apontou defronte ao Gravatá e logo adentrou a boca do rio. Com a maré cheia, ela chegou até o porto.

A embarcação era conhecida. Pertencia à Capitania dos Portos. Três homens surgiram, cansados da ladeira, mas ainda assim com olhares atentos e duros. O mais provável era que tivesse havido alguma denúncia.

José Reis começou a se justificar para João do Velho, tipo de ensaio para os homens da lei:

— Há sempre os filhos da puta que entregam o companheiro pescador. Se o mar não está bom para a pesca de linha ou de rede? Há mal algum em usar uma ou duas bombinhas? Mal nenhum. Desse modo não falta comida na mesa. O mar é grande. Tanto mar nesse mundo. Não é não, amigo João?

— A ladeira aumentou a raiva deles. Olhe suas caras — respondeu João do Velho.

Os três homens se aproximavam. Davam bufos enormes e não tinham boas caras. Pareciam estar determinados a resolver algum caso, fosse ele qual fosse.

— Bom dia — disse um dos homens.

— Bom dia — responderam João do Velho e José Reis.

— Essa ladeira mata um — disse o agente de polícia, sentando-se no passeio, mas diante do olhar severo do terceiro homem, que parecia estar no comando, rápido adotou postura de soldado ao ouvir: “em sentido!”, e posicionou-se ereto junto aos outros dois.

O que parecia estar no comando, disse:

— Soubemos de caso de bomba por estas bandas. Vocês sabem de alguma coisa?

— Não sabemos de nada, senhor — disse João do Velho.

— Você fala por ele? — perguntou o agente de polícia.

— Não senhor, ele não fala por mim. Eu falo por mim — disse José Reis, com voz segura — Mas o senhor quer saber? Há muitas explosões nesse canal.

— Você, como se chama? — perguntou o do comando.

— José Reis, às suas ordens.

Ao dizer seu nome, os três homens se entreolharam.

“Decerto que houve denúncia. Ah, Terêncio desgraçado! Se eu me estrepar, te estrepo depois. Filho da mãe!” — José Reis pensou, enquanto os homens dialogavam com os olhos.

— Pois bem, José Reis, é o senhor a quem procuramos.

— Ah, então me procuravam?

— Exatamente.

— E posso saber por quê?

— Isto será revelado na delegacia. O senhor terá de vir conosco.

— Quem o denunciou? Ir para aonde?! — quis saber João do Velho.

— O senhor deve ser... — enfiou a mão no bolso e retirou um bloco de anotações — Você deve ser João do Velho — disse o homem da lei.

— Sim, senhor.

— Contra você não há acusação. Não é isto, camarada? — perguntou por perguntar ao agente que se distraía olhando o mar. Rapidamente o homem se virou e disse:

— Sim. E nenhum de nós falou em “denúncia.”

— Exatamente. Não sabemos de nenhuma denúncia! Quer nos dizer mais alguma coisa? — perguntou, incisivo, o homem no comando.

João do Velho procurou se acalmar. Não acreditou que os homens da Capitania dos Portos, num jogo ardil de palavras, estivessem tentando colocá-lo contra o amigo José Reis. Por isso, disse com firmeza:

— Não foi isso o que disse, senhores. Os senhores me entenderam mal.

O agente do comando deu à sua cara um ar de quem não estava acreditando no que acabara de ouvir.

— Veja bem, João do Velho, não devíamos tratar desse caso com você, se o fazemos é por pura educação. Você é amigo dele, estou certo?

— Sim senhor.

— Pois bem, é compreensível dar-lhe a mão nessa hora. Porém, aconselho-o a não fazer, pois precisa dela para segurar a linha, não é mesmo?

— O que os senhores pretendem, afinal? — perguntou João do Velho, já contrariado.

Os homens da lei, diante do tom exigente de João do Velho, abandonaram a postura frouxa do riso e avançaram em José Reis.

O agente da lei, que parecia estar no comando, disse por fim.

— Já que o caso é assim, o senhor está preso, senhor José Reis. É um erro sermos tolerantes. E o algemou.

Desceram a ladeira do porto empurrando as costas do homem, que ia andando aos trombolhões.

 

***

 

João do Velho chegou ao bar de Preto e disse:

— Levaram José Reis.

Sem entender, Preto perguntou:

— “Quem” levou José Reis. E para aonde?

— Os homens da Capitania dos Portos. — respondeu João do Velho.

— Como assim “os homens da Capitania dos Portos”. O que fez José Reis de errado? — quis saber Preto.

João do Velho perdeu a paciência e disse:

— Ora, Preto, como assim “o que José Reis fez?”. Ele fez tudo. Tudo o que não devia. Cansei de avisar: “Pare com esse negócio de bomba. Pare com esse negócio de bomba”. — e ele: “Nada, João! Deixe de ser frouxo, homem”. Taí o que deu. Os oficiais da Capitania dos Portos levaram ele, algemado.

— Levaram?! Algemado?! — estranhou Preto.

— Algemado. — confirmou João do Velho.

Os homens no bar ouviam calados, atentos à conversa de João do Velho e Preto. Outros se comportavam como se já soubessem do ocorrido, mesmo antes do fato acontecer.

— Quem não sabia que ia dar nisso, rapaz?

— Mais hora, menos hora, ele ia ser pego. Foi o que eu disse.

Terêncio e Juarez, sentados à mesa encostada na parede, jogavam dominó, concentrados no jogo. Juarez vez ou outra desviava o olhar para onde estavam João do Velho e Preto. Estava atento à conversa. Mas julgou prudente não se envolver. Estava às boas com Terêncio e, como jogava com ele, na sua cabeça pareceu certo que, de alguma forma, havia não uma disputa, mas sim uma parceria. Também sabia do caso entre José Reis e Rita, mulher de Terêncio. Procurou manter-se indiferente.

João do Velho, vendo-os alheios ao assunto que interessava a todos no bar, aproximou-se e perguntou:

— E você, Terêncio, não tem nada a dizer?

— Dizer o que, seu João? — respondeu, sem tirar os olhos do jogo. — Bati, Juarez! — disse rápido, e estalou uma bucha de ás na mesa.

— Não se faça de desentendido. Os homens da Capitania dos Portos vieram e levaram José Reis. Você tem alguma coisa a ver com isso?

Tendo batido o jogo, virou-se e encarou João do Velho.

— O senhor está me acusando, seu João?

— Não. Estou perguntando.

O bar, a esta altura, fez silêncio. Terêncio, muito seguro, respondeu, aplacando o olhar e a voz:

— Não, seu João, eu não tenho nada a ver com a prisão de José Reis, apesar de achar que ele mereceu.

João do Velho não podia fazer nada. Achava-se contrariado com o que aconteceu a José Reis. Eram amigos. Terêncio parecia dizer a verdade. Tinha de reconhecer que Terêncio tinha razão: “ele teve o que mereceu”. Por isso, achou por bem sair do bar. Precisava ficar só. Pensar um pouco. Tomar uma providência. Ou simplesmente esperar o tempo dar seu jeito.

“O tempo sempre ajeita tudo. Seja para o bem, seja para o mal.” — ele pensou, já entrando em casa.

 

***

 

Na cela escura, José Reis repassava o dia, desde a chegada dos homens ao Mirante, em Barcelos do Sul.

Enquanto os homens empurravam-no ladeira abaixo, duas ou três vezes ele virou-se, na esperança de ver alguma reação positiva de João do Velho. Algo que viesse dele que o tirasse daquela arapuca à qual se metera. Olhou a primeira vez e viu o homem lá, sentado no passeio. A segunda vez que se virou para ver o amigo, ele já estava de pé. Acreditou que tomaria alguma providência. Ele sempre tinha um jeito para tudo. Viria ao encontro dos homens e os convenceria, com seu jeito calmo e controlado de falar. Logo estaria livre. No coração de José Reis algo brilhou. Esperou ansioso. Foi quando sentiu o peso da mão do agente da Capitania dos Portos, empurrando-o a ponto de tropeçar e esfregar a cara no chão.

— Vamos! Levanta, condenado!

Ergueu-se meio tonto. Incomodado com a areia que entrou nos olhos, piscava muito. Com as mãos algemadas, o jeito foi roçar como pôde os olhos no ombro. Olhou na direção onde estava João do Velho e avistou-o lá adiante, de costas, indo embora.

— Vamos! Está esperando o que, condenado dos diabos?! — empurrou-o de novo o policial.

A lancha da Capitania dos Portos os aguardava, presa no cais. Algumas crianças brincavam de mergulhar no rio. A embarcação caía-lhes bem. Sobre o convés, saltavam de cabeça ou davam mortais.

Um dos agentes, ao ver os meninos fazendo a lancha de trampolim, adiantou-se e os expulsou com palavras duras. Com as cabeças fora da água, as crianças não acreditavam que José Reis estivesse sendo levado pelos homens da Capitania dos Portos. E algemado.

A lancha partiu. Os meninos, com olhos abismados sobre as águas, viram a lancha dobrar a coroa e sumir. Logo nem se ouvia o seu ronco. Tudo aquietou-se.

— Vamos. Vamos embora — disse o menino mais velho. — O rio está puxando. A maré começou a vazar.

“E eu aqui no escuro mordendo um osso podre que não me leva a nada. Amigo de merda! Poderia ter feito algo, não poderia? Mas o que fez? Deu-me as costas. Bom filho da puta! Já o Terêncio, é compreensível que tenha me entregado às feras. Tem lá os seus motivos. Eu, se fosse ele, matava o desgraçado que... ora, o desgraçado sou eu... mas nem por isso há erro no meu ato... Erro. Erro. Erro. Quem sabe lá o que é e o que não é errado. Malditos peixes! Pensando bem, nem tudo está perdido, ainda há a Rita, presente do céu... coisa boa da minha vida. Será que foi sonho? Hum? Hem? A vida não é de toda má. Há surpresas. Rita. Rita. Rita. Agora tenho de deitar-me e dormir. Quem sabe não sonho com você... Hem? Hum?”

— Ei, vocês! Aqui está frio. Tragam-me um cobertor.

 

***

 

Despertou ao ouvir o tilintar de chaves e em seguida o baque forte no metal das grades.

Abriu os olhos e o facho de luz de uma lanterna os magoou. Protegeu os olhos com uma das mãos e perguntou:

— Quem é você?

— Isto não importa. Vamos, levante-se!

— Levantar para quê? Acabei de pregar os olhos. Para onde vai me levar.

— Não estou autorizado a falar com os detentos. Só tenho permissão de avançar até este ponto.

— Por que me prenderam?

—

— E agora, para onde está me levando?

—

O homem o ia empurrando por um corredor de teto baixo, estreito e comprido. Com a lanterna, iluminava o caminho.

De início imaginou estar em uma cadeia, mas logo ficou confuso por não ver outras celas além da sua. Por um momento virou-se e olhou para trás. Rapidamente, antes que o homem que o levava o fizesse voltar o olhar para a frente e seguir o seu caminho, ele só viu escuridão atrás de si.

Algum tempo depois, recebeu o que seria a última orientação:

— Pronto. Deixo-o nesta sala. — disto isto, passou a ouvir as passadas do homem se afastando, e logo o silêncio.

Chamou-lhe a atenção algo esbranquiçado à sua esquerda. Andou um pouco e constatou que era a luz do dia que começava a bater no vitral da janela. Olhou através dela e viu o céu estrelado, mais embaixo, a luz dos postes refletindo na água escura do rio Acaraí.

“Sim, estou No prédio da prefeitura, que também é a cadeia de Camamu. Ora, já estive neste lugar uma outra vez, em visita, e não me lembro do corredor, nem que só houvesse uma cela... Mas que estranho... E agora, por que me deixaram aqui?”

Como o tempo pasasse, sem que ao menos lhe aparecesse alguém, nem que fosse para lhe dizer qual seria o próximo passo, encostou-se à parede, arriou o corpo e sentou-se no chão frio.

Deve ter dormido, pois só se lembra de passos firmes se aproximando. Abriu os olhos e viu a sala ampla e iluminada. Sentiu-se pequeno e frágil em espaço tão largo, o teto alto.

Um homem fardado apareceu-lhe e disse:

— Pois bem, senhor José Reis, levante-se.

José Reis apoiou as mãos no chão e, escorando-se na parede, colocou-se de pé. Achou prudente ficar calado. Com olhos atentos e desconfiados, esperou o homem falar.

— Pois bem, estivemos reunidos, mas, antes da sentença, gostaríamos de saber se prefere se declarar culpado?

— Culpado?! Mas culpado de que, meu senhor? Quem me acusou?

— Pois bem, entendo então que não admite a culpa. O que queremos que o senhor entenda, senhor José Reis, é que assumir a culpa já é um primeiro passo para a liberdade e...

— Ora, então quer dizer que estou preso?

— Isto não depende de nós, senhor José Reis. Entenda que não prendemos ninguém. O senhor é capaz de entender isso?

— Então não estou preso?

— Bem, isto só depende de o que o senhor entenda que seja liberdade. Eu, por exemplo, estou “preso” à função de condenar pessoas que se acham livres para fazer o que quiser, como o senhor, e estar preso a este cargo representa minha liberdade. Mas, esta conversa não nos levará a nada. Então, o senhor se declara culpado?

Já com o corpo e a cabeça cansados, respondeu resoluto:

— Não. Não senhor. Eu não me declaro culpado.

O oficial olhou-o sério. Caminhou até a mesinha encostada à parede, abriu uma gaveta, tirou o carimbo, a almofada de tintas e uma folha de papel e carimbou-a. Voltou a José Reis e entregou-lhe o papel, onde se lia:

 

LIVRE.

 

Sem saber quanto tempo passou repetindo LIVRE LIVRE LIVRE, de repente olhou em redor da sala e percebeu que estava sozinho. Vacilante, mesmo trazendo em si a noção de que não cometera crime algum e que justamente por este motivo era-lhe injusto carregar o peso de uma condenação, andou até a porta, abriu-a e saiu.

“LIVRE. LIVRE! LIVRE!!”

***

A escuridão foi dando lugar à claridade. Pouco a pouco as lâmpadas dos postes foram se apagando. Sem um casaco apropriado para o frio, José Reis descerrava a cidade alta, rumo ao cais do porto, na esperança de que logo chegasse embarcação que o levasse a Barcelos do Sul.

Um ou outro trabalhador já começava a passar por ele. Um senhor olhou-o, disse bom dia e continuou seu passo apressado. Na cidade baixa, deu de cara com senhor Epitácio, que o reconheceu logo.

— José Reis, você por aqui a esta hora. O que houve? Aconteceu alguma coisa. A lancha de Barcelos ainda não chegou, pois não?

— Bom dia, senhor Epitácio.

— Então, dormiu aqui em Camamu? Vai a Salvador? Ou está com alguém doente?

— Os homens da Capitania me prenderam, senhor Epitácio. Passei a noite na cadeia.

— Mas como, homem de Deus! O que foi que você fez? Ora, bem, a verdade é que todos sabem que tem soltado umas bombinhas. Não é verdade? Mas Deus, por que escolher logo a você? Prendessem os fornecedores. Sim, bem, mas vejo que reviram seu caso e soltaram-no. Não foi assim? Esses caras já estão abusando...

— Confesso que até agora não entendi o absurdo dessa história. Chegaram até educados, é verdade, lá em Barcelos. Fizeram umas perguntas, e depois, surgindo uma contrariedade, dizem que estou preso, me colocam algemas, trazem-me a Camamu e me põem numa cela escura. Agora, ainda há pouco, apareceu-me um homem e, carimbando minha sentença, me diz que estou livre. Maluquice, o senhor não acha?

— Ha ha ha ha ha! Brincalhões. Assustam-nos à toa. Qual a sentença? Estás condenado a ser livre. Ha ha ha ha! Mas, e você, o que disse para merecer tal “condenação”?

— Disse que não era culpado.

— Hum, não sei...

— Como assim “não sei”, senhor Epitácio? Então o senhor acha que devia me confessar culpado?

— Liberdade. Liberdade. Ser livre para muitos é a pior condenação. Por isso alguns prendem-se com prazer às algemas. O casamento, a religião, a pátria, por exemplo. Mas vejo que este não é o seu caso. Bem, amigo José Reis, as horas estão pasando, tenho de ir. Dê lembrança a João do Velho.

E saiu. Dava passadas curtas e rápidas. A pasta colada debaixo do braço.

— Eu, hein! Acho que todo mundo nesta cidade está maluco.

Foi andando devagar na direção do cais, mesmo sabendo que àquela hora ainda não havia chegado sequer uma embarcação de Barcelos. Caminhava triste e deslocado, agora com a forte impressão de que pisava em terra estranha, de que alguém o seguia.

Virou-se e olhou para trás.

Flamarion Silva

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