Être Et Néan
Nove e meia da noite. O pobre coitado do Futuro da Nação se estende na sua poltrona, surrada e preferida, pra ver o seu programa preferido. O corpo flácido acha o seu destino no horário comercial enquanto que na cozinha o jantar já está quase pronto. Mas ao contrário do que possa parecer, ele não está cansado. Não, o Futuro da Nação nunca fica cansado, ele corre e corre e corre e corre e observa a todas as liberdades que lhe são upgradeadas e devora com avidez todas as felicidades que lhe são atiradas goela adentro. Ele está liberto, isso é o que importa. Num mundo onde ninguém se liberta, todos se consolam em estarem libertos. E ele adormece na sua poltrona surrada e preferida, sem se dar conta que as flores que ele cultivou dentro de casa com tanta dedicação e carinho, estão avançando em sua direção. Os ramalhetes crescem e sussurram, rastejam-se pelo assoalho coberto por tapetes baratos, se aproximam do pobre Futuro da Naçã o, adormecido com a televisão ligada. As flores envolvem as suas pernas e os seus braços, tirando qualquer possibilidade de uma grandiosa escapada. São verdadeiras correntes de primavera, formando em torno do corpo inerte uma impermeável clausura de odores bucólicos. Os espinhos das rosas ganham vida própria, e se misturam com as veias do Futuro da Nação. O sangue jorra, patrocinado pela guerra e pelo consumo e por todos os finais felizes de todas as novelas, todos os futuros, todas as esperanças.
Essa é só mais uma noite para ele. Em algumas horas o sol irá raiar, e o Futuro da Nação irá mais uma vez ser acordado pela voz do amor, sem nunca desconfiar que está coberto de correntes floridas. Que está impregnado até a raiz dos cabelos com os insuportáveis espinhos de rosas.
Daniel Frazão
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