As metamorfoses de domingo

    Acordou de súbito, com o petisco da noite anterior remexendo na barriga. saltou da cama e foi ao banheiro. Era cedinho. Voltou trazendo um livro de contos, aliviada. Ajeitou o travesseiro e começou a ler. Qualquer coisa de bonito lhe tocou. Olhou para o lado e o menino dormia. Passou-lhe delicadamente os dedos sobre os cabelos. Um sentimento de ternura lhe tomou por inteiro, tinha dádivas suficientes:
um livro de contos, um domingo tranquilo e um menino... Oras, que mais poderia querer?

    A barriga remexeu novamente, mas não sentiu calafrios. E já no banheiro, olhou o céu pelo basculante. Terminada sua mais que necessidade fisiológica - seu apelo estomacal - foi pra sala e sentou-se no sofá. O menino acordou, ainda sonolento e com fome. Ela levantou-se para recebê-lo, beijou-lhe levemente os lábios, buscou coberta e travesseiro para que ele se aconchegasse no sofá - não muito aconchegante - da sala, e entregou-lhe o controle da televisão.

    Foi preparar-lhe o cappuccino, com um carinho de mulher. Era isso também, sentia-se plenamente mulher! Tirou da cristaleira a xícara e o pires mais decorados para servir o menino. Passou requeijão na torrada, uma por uma, como se ela mesma quem fosse comer. Deu-lhe. Não como quem dá comida, mas como quem doa amor.

    Tão subitamente quanto tinha acordado, desabou. A atmosfera do apartamento transformara-se. Os ponteiros do relógio, parado ás nove e quinze - de braços abertos - pularam para seis e meia. Ela sentiu o coração surrar dentro do peito com uma violência descabida. E então, tornou-se o sangue quente que corria em suas veias, o fel do ciúmes descia-lhe garganta abaixo e ela quis cuspir, urgentemente, o que inevitavelmente ia para o seu estômago. Sua imaginação projetou, cruelmente, cenas entrecortadas do seu amante nu com outro corpo feminino que não o seu. Falou mentiras grosseiras - que é uma maneira que os covardes tem de se defender. O menino, por sua vez, respondeu-lhe a acusação - com a violência que a violência gera. E a seu modo - escorpiano por natureza - metamorfoseou-se em homem.

    Os dois se desentenderam, ficando cada um em sua casa.

    Ela - deitada em sua cama ruim - sentia febre. A dor de barriga já não era mais pela má digestão do petisco da noite anterior, e sim pela indigesta metamorfose da promessa que aquele domingo lhes davam. E como cobertor para sua febre, a culpa caiu-lhe pelo corpo - corpo ainda energizado pela entrega da noite passada. O peito apertado, cheio de ternura reprimida. Ah, como sabem os amantes a angústia que causa perceber que machucou uma pessoa amada! Ela tentou tocar violão, mas impacientava-se. Tentou ler, inutilmente. Cochilou depois de chorar. Não comeu o dia todo. Tinha se metamorfoseado em menina:

Uma menina má que desperdiça dádivas divinas.

Denise Bello

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