Carta para o amanhã
A correspondência estava adormecida há muito. Na verdade, existia antes mesmo de ser colocada no papel. Sem que a primeira palavra ganhasse sentido, forma e cor pela tinta azul, era conhecido seu remetente, o destino e o que a movia. Toda correspondência, quem sabe, baseia-se nessa trinca circunstancial. O intuito daquele pequeno pedaço de papel, de certo, era revelador. Seu conteúdo havia sido escrito à mão; não pertencia à era binária da comunicação de massa. Não guardava sinais de edição, nem tampouco de uma correção mais clínica.
Sua prosa – indicava – não possuía sequer vestígios de que tivesse sido reescrita. Seu discurso brotou num susto, uma golfada abrupta que não cedeu tempo a uma revisão cuidadosa. A carta, construída à moda antiga, revelava amiúde a identidade de quem havia empunhado a pena, ainda que apócrifa ao final.
O conteúdo era urgente, vivo e apaixonante. Descortinava sem piedade os sentimentos mais recônditos de seu feitor. Seus traços arredondados em art nouveau eram capazes de levar qualquer olhar a um irrecusável passeio por curvas e esquinas claras, onde delicadeza e sensibilidade tinham hora marcada para o fito.
O pedaço de papel desnudava uma figura anacrônica, que certamente não se empolgaria com os meios assépticos da comunicação atual. Certas coisas, desde sempre, só ocorrem na presença acalorada do toque, do grunhido e das lágrimas. E um pedaço de papel, ao receber a herança sentimental do autor por meio da sua escrita, portava naturalmente uma gama de sentimentos tão plurais quanto o destinatário pudesse decodificar.
Tão bela e pura se mostrava, encontrou triste repouso no fundo de uma gaveta de criado mudo que embirrava ao se abrir e fechar. O tempo perdeu a identidade de seu remetente; o esquecimento fez esvair o objetivo de suas linhas; esfarelou-se a identidade de quem inspirara tamanha declaração.
Ao lê-la por duas ou três vezes, a jovem não conteve a emoção. Quantas mais haviam tido o privilégio de encontrar seu conteúdo? Tomou a oração da carta para si, como uma seresta à janela pela noite de primavera; apertou-a de encontro ao peito. A dobrou com delicadeza, devolvendo-a a seu leito mortuário. Levantou-se, olhou ao lado e percebeu que nada mais a interessava por ali.
Deixou o pequeno antiquário para trás. Caminhava apressada. Seu destino, assim como o da carta, era incerto.
Thiago Secco