O Bardo do Vir-a-ser
Não me lembro de muita coisa. Acho que foi assim, eu estava andando de bicicleta, num dia ensolarado. Havia sol, poucas nuvens no céu. Pássaros aos montes, revoadas de pássaros, uma sutileza no ar que se podia pensar que ele era diáfano, bem diferente da argamassa que prende nossas narinas no cotidiano. Eu caminhava de bicicleta, era domingo, havia crianças nas calçadas. Em determinado momento eu parei, porque eu trazia, às minhas costas, uma mochila com hidratação; costumo andar com isotônicos e assim foi, parei à direita e sorvi a bebida gelada, mantida assim pelo revestimento térmico de minha mochila.
Não foi mais que um tremor, não foi menos que um brilhar de luzes. Pensei, o que foi isto? Ora, nada. Retomei meu caminho, porque passou o mal-estar rapidíssimo, passou a vertigem que nem houve. Passou e eu fui de novo à rota de bicicletas. Notei uma coisa, se haviam poucas pessoas antes, agora parecia haver muitos mais. De onde vinha tanta gente? Famílias inteiras! Pais, mães, filhos andavam em grupos cada vez mais numerosos. O ar parecia tão ou mais diáfano que antes! Nada mais havia que o ar, as pessoas felizes sobre suas bicicletas. Os carros, continuavam passando, céleres. Mas as meninas soltavam seus cabelos em cachos e as crianças pareciam saber mais dali que seus pais aflitos. Um cansaço novo se apoderou de meu corpo, era como se eu precisasse mais um repouso. Parei novamente.
Consternado, verifiquei que meu isotônico se fora. Acabara o maná! Eu volvi os olhos à mochila. Nisto, parou ao meu lado uma linda moça.
-- Está com sede?
-- Muita! Acabou meu isotônico!
- -Beba do meu!
-- Imagine! E você como fica?
-- Não costumo usar muito disso, aqui.
Como assim, aqui? Aqui não é lá nem lá seria aqui. Como assim? Nessa cidade quente, sujeita a mudanças bruscas de temperatura...
-- Está bem, aceito. Mas lhe devo uma! Você vem sempre por aqui?
-- Ahn, ultimamente dei pra vir, sim,mas costumo, hum, costumo andar em outras paragens. É que vi você aflito e com sede...resolvi ajudar. Aqui, gosto de ajudar as pessoas.
-- Posso perguntar algo?
-- Sempre.
-- Aqui, aonde? Em nossa cidade? Aqui na ciclovia?
-- Bem...Sim! Aqui, ora!
E saiu, andando, anjo como veio e que foi. Deixou-me só, a sós com minha bicicleta, sede sanada e uma curiosidade por saber quem era ela e o que fazia ali, sempre e depois dali.
-- Ela sempre foi boa, aqui.
Era uma senhora que andava próxima de mim.
-- A senhora a conhece?
-- Ela sempre vem. Aqui, ela sempre vem. Já precisei muito dela, e ela sempre me ajudou, nas horas de sede intensa, nos momentos de aflição ela veio. Hoje, ando em paz.
-- Aonde?
-- Aqui, moço! Ih, já vi que não conhece nada.
Saiu andando, a senhora e a moça que havia me ajudado, engraçado, evaporara. Novamente a tontura breve, a vertigem súbita. E novamente ela apareceu.
-- Você é um fantasma?
-- O que você acha?
-- Penso que sim.
-- Assim o dizes.
-- Posso perguntar algumas coisas?
-- Estou aqui justamente para isso.
Comecei a conversar com ela. Que me disse que aqui era o agora, a Realidade e em breve, eu estaria mais ocupado, no momento impermanente do meu bardo do vir a ser. O que seria isso?
-- Isso, meu caro amigo, isso é a impermanência. Isso é a Vida dentro da vida...
-- Que é um sonho...
-- Que é a vida. Eu me abstenho de comentar mais.
-- Puxa, mas eu falei tanto assim?
Ela sorriu, os cabelos esvoaçando com a suave brisa. Acelerou e sumiu, como um fantasma. E eu segui em frente, leve como uma pluma, já me desvanecendo no ar límpido da manhã de domingo.
Flavio Gimenez