Distopia
Consultório, as horas passam no relógio da parede. Posso ver tudo organizado dentro da sala em que exerço minha profissão: Os móveis iluminados por uma réstia de sol, a escrivaninha que me deu um trabalho danado para comprar e depois encaixar dentro da sala bem arrumada, a cadeira onde me sento; as cadeiras onde os pacientes se ajeitam, o quadro no fundo, ao pé da pequena maca onde exerço o exame cuidadoso dos que assim necessitam. No mais das vezes, eu chego à conclusão que as pessoas precisam muito mesmo de um exame profundo de suas almas. Depois de muitos anos, eu digo a mim mesmo, o que a alma produz, no corpo se reduz. Não quero ser um inventor de mentiras, obviamente sei do que falo: É nos olhos que muitas doenças se pressentem, na maneira de olhar que um estado lúcido se aglutina e mais, num pestanejar entre palavras se apercebe um delírio escondido...Muitos se chegam a mim indicados por colegas próximos, porque sabem de minha paciência, de meu estilo de alongar as conversas, muito embora isto às vezes me renda a pecha de demorado: Prefiro demorar-me a deslindar o que vejo à minha frente do que dar as costas a um obscuro problema insondável aos outros. Daí que resolvo, e muito, grande parte do que me é cobrado.
O relógio na parede balança seu pêndulo, um destes relógios trabalhados que foi presente de uma família tradicional que muito me ficou grata por eu haver cuidado da avó deles, uma nonagenária que partiu sem mais delongas num dia cheio de luz, não sem antes deixar um bilhete destinando-me tal peça, um relógio italiano de fina madeira avermelhada. Ele balança e tranquiliza; uso-o como fundo às vezes para temporizar minhas consultas, uma música que acalma porque as batidas são regulares como o fluxo do tempo inventado, porque de verdadeiros tempos se faz o tempo inteiro, cada qual com seu segundo. Nosso mundo derradeiro( pois que, também descobri isto, depois de muitos anos) é este de tempos marcados, de horas marcadas, de minutos transcorridos entre um afã e outro de existir e não é raro o consulente se dizer aliviado ali dentro, porque lá se produz um tempo que eu sei que é meu mas no fundo, e todos o sabemos é mais dele(porque o compra em pacotes). Raça danada, esta humanidade.
Por falar em pêndulo, lembro-me da hora: Não preciso olhar o meu pulso, olho em frente.
– Dona Emília?...
– ...Sim, Doutor?
– Aquele casal... Aquele que marcou a consulta em cima da hora, já chegou?
– Era para eles terem chegado, mas... Espere, tocou a campainha...
Ouço o habitual barulho de abertura da porta da frente; o costumeiro alarido de Emília, sua voz mais que agradável fazendo entrar o casal atrasado em pouco tempo. Café? Biscoitos? O Doutor já vai lhes atender...
– ... Eles chegaram.
– Pode mandar entrar, eu os recebo aqui. Traga por favor aquelas receitas para carimbar? Hoje virão dois ou três que precisam...
– Eu separo. Eles estão indo!
Entram os dois: Ele, um senhor beirando seus setenta e três anos, calva brilhante com um olhar um tanto quanto luminoso e enigmático. Traz uma camisa de colarinho alto, fácil de tirar e uma calça elegante, de onde pende no cinto um relógio destes de bolso com corrente dourada. Ela veste-se com dignidade, como toda mulher que sabe vestir-se para ocasiões especiais, sem luxo, porém com adequação. Ofereço-lhes o lugar à frente de minha escrivaninha e afasto a tela de computador, pois quero sublinhar que sou todo ouvidos.
– Em que posso ajudá-los?
Um olha para o outro, outro olha para um.
– Diga, mulher.
– Diga você; você que pediu para marcar a consulta.
– Ora, está bem;já sou bem grandinho para saber quando falar.
Uma pequena cotovelada disfarçada sela o início da fala dele. Eu me abstenho de julgar o que me vem à frente, mas não posso me furtar a observar o quanto os homens se dizem donos do destino e o quanto as mulheres desdizem de fato o que eles dizem de si. Ponho-me a escutar, até porque hoje em dia, é daí que saem os grandes acordos e também as grandes patifarias...
– ...Pois bem. Doutor, sou um homem experimentado, sabe. Acontece que de um tempo para cá, dei de ter uma dor bem aqui...
... E aponta para o estômago.
– Pois é, bem aqui.
– Diz para ele, vai!
– Então, sou velho e experimentado. Acontece que sou muito nervoso...Demais, Ainda trabalho e toco meus negócios!
– Muito bem! Isto é muito bom!
– ...Pois é, meu caro Doutor, eu comando uma indústria de artigos de plástico, chegamos a fazer brinquedos...Mas isto é o que faço, o que sinto, além da dor, é um incômodo, uma sensação vazia no peito...Como se nada houvesse ali, como se nada existisse...
A mulher o fita de cima a baixo...
– Pois é, um homem destes, dono de uma empresa, cheio de responsabilidades, de repente quer largar tudo...
– Não é verdade!
– Mas como...? Não é o que você disse ao outro?
Eu o fito. Espero que ele diga o que sente, anoto em minha mente cada gesto que ele faz; minucioso, descreve os fatos com as mãos, os dedos finos se projetam à frente, enquanto descreve as particularidades, os detalhes, o jorro de luz da consciência sobre a obscura parte de si que ele mesmo desconhece: Uma pessoa assim, ressequida por anos de comando, sem ter o tal senso de comando, perde-se em brumas de confusão. Penso que talvez ele esteja perdendo os limites que sempre lhe foram caros, penso que a solidão do Poder lhe tomou o castelo da vida e ele, assustadiço, se vê descomandando, se enxerga perdendo o tino, surpreende o desrespeito nos seus subalternos, talvez com um quê de ira e revolta com a vida que se esvai por entre seus dedos nodosos...
O relógio bate as horas, regulado para abafar o som para não causar mal-estar entre os pacientes que se expressam à meia-voz... Ele continua falando e eu noto em seu semblante algo perdido, algo talvez esquecido, uma juventude que teima em bruxulear, mas que fenece como a luz poente que vejo da janela do consultório...
– Incomoda a luz?
– Não, de maneira alguma...
– Não...
– Mas o senhor ia dizer do outro...
– Tenho outro médico, doutor. Ele é um velho amigo. Andou de pedir exames, daí que à primeira queixa minha, já me mandou fazer uma endoscopia.
– Talvez ele tenha tido seus motivos!
– Na verdade, eu o forcei a pedir. Porém, os resultados que ele achou não eram positivos... Pólipos, ele disse que tenho pólipos!!!
A esposa olhou com grandes olhos o marido que repetia a palavra maligna como se fora um mantra. – E ele diz que talvez seria melhor não esperar! Que talvez seja melhor que eu os opere! – . ..Daí, resolvemos procurar seu bom-senso, Doutor.
Ao que estenderam os exames para que eu os visse: Tudo normal, não havia sinais de malignidade; o que tocou o terror neles foi a maneira como o Outro o disse; santas palavras, malditas palavras. Tudo depende de como se fala ou se diz... Eu os acalmei com os resultados, não sem antes notar que havia algo de mais oculto e submerso por ali. Pensei com os meus botões: um casal distinto, marcando uma consulta, bem paga por sinal, para me mostrar um exame sem nenhum sinal de alarme?
– Mas...Seria somente por isto?
Um olhou ao outro, a mulher desviou os olhos...Mas de canto de boca, falou entre dentes...
– Fale logo!
– Ah, não sei se consigo...
– Fale! Ô meu Deus, que saca-rolhas!
Ele enrubesceu e daí, ouvindo o matraquear leve e ritmado das engrenagens do relógio que pingava as horas, restou-lhe confessar ao que viera.
– Doutor, temos uma filha!
– Ah, pois não! Deve ser bonita!
– Sempre foi!
– Puxou a ela...
A sua esposa desta vez ficou relaxada.
– Pois é, Doutor. Ele quis vir. Este nosso velho amigo sabe que ele é nervoso; deu-lhe uns calmantes.
– Hoje em dia, tudo se resume a calmantes, até porque a situação está confusa...
– Pois é, Doutor. Acontece que nossa filha sempre foi doidivanas...
– Ela não é doida!
O marido defendia a filha, agora.
– ... Como eu dizia, ela sempre foi libertária. Ela acha que nós somos quadrados. Acontece que deu para ler livros de um tal Castañeda, um mago mexicano que encontrou sua totalidade com a mescalina...
– ...Sei...
– Ah, diga você a ele, querido.
– Está bem! Está bem! Então, eu e minha esposa estivemos no México, nos anos oitenta. E andamos experimentando o tal Nagual de Castañeda.
– ....Confuso... Mescal...
– . .. O cacto sagrado deles.
– Pois não!
A luz batia numa ponta da escrivaninha, iluminando as receitas deixadas ali sem que eu soubesse como dona Emília o tivesse feito sem que eu percebesse. Coisas de magia.
– Então, meu caro Doutor. Esta ansiedade, este medo... Posso até pensar que não, mas... Eu desejaria voltar a sentir o que sentimos, eu e ela, no México, mas...
– Temos medo, até porque nossa filha agora faz parte de uma comunidade...
– Comunidade?
– A Comunidade Terapêutica da Santa Paz de Castañeda.
– Ah!!!
Nunca ouvira nada a respeito desta comunidade, muito menos soubera que Carlos Castañeda a havia fundado, se é que ele existira de fato, além de seus livros maravilhosos. Em suma, o casal na realidade queria saber se, a esta altura da vida, eles poderiam voltar a consumir o tal alcalóide alucinógeno. Eu fui franco: Nada que altere a mente de tal maneira pode ser tão saudável a ponto de não causar danos permanentes a eles; eu os convenci de que sua filha talvez estivesse trilhando uma senda que já não era a deles.
Eu o fiz ver que, se tinha ansiedade por algo novo e se o vazio de seu peito se fazia tão imenso, talvez se ele pudesse fazer ações comunitárias, ele fosse mais feliz. O mundo está cheio de fáceis soluções, eu disse, e a mais fácil delas é perder-se num caminhão de fantasias que não levam a nada, sem desmerecer o potencial benéfico que isto pode trazer a comunidades de índios mexicanos que se acostumaram a trazer o Conhecimento do Invisível aos olhos deles. Eu os fiz ver que, em nossa realidade, transplantar algo como uma alucinação poderia trazer desorganização, caos e tristeza a uma casa aonde eles tinham colocado tanta energia, erguendo uma ponte de empregos e benefícios...
Saíram satisfeitos, porque eu lhes confirmara algo que pensavam na intimidade.
A senhora elegante, ao fechar a porta, fez o sinal do polegar para cima: O relógio deu cinco horas.
Dona Emília trouxe então os receituários.
– Mas eles já estão aqui!
– Estranho, eu não entrei aqui enquanto o senhor os consultava..
.
O Relógio deu de novo cinco horas.
Lá fora, já não havia casal nenhum.
Flavio Gimenez