FALSETE EMBRIAGADO

Choveu fraquinho durante dois dias inteiros, mas agora parou. Pela janela aberta do pequeno apartamento venta um ar frio e atravessa a luz quieta e dourada do fim do dia. Pode-se enxergar a dança de corpos minúsculos nestes raios de sol mornos, letárgicos.

Ela abre a porta do banheiro e sai, arrastando ao redor de si uma nuvem de vapor perfumado, vestindo uma camiseta largada, calcinha de algodão, e secando com a toalha os cabelos morenos e compridos.

“Eu tou tão cansada”, suspira.

Atirado no chão por cima de meia dúzia de almofadas perdidas de seu sofá, com um calção no corpo e uma lata de cerveja na mão, ele parece ignorar as palavras dela, mantém os olhos fechados e a cabeça pendendo do pescoço solto com displiscência; esticando as sobrancelhas, ele acompanha com um uivo preguiçoso o vocal feminino lancinante da música que toca muito alto no aparelho de som, que é o único objeto no recinto acompanhando as almofadas, latas vazias de cerveja e uma poltrona envelhecida.

Ela olha pra poltrona mas decide não sentar-se nela, pisa por cima do corpo dele no chão e aproxima-se da janela aberta, apoia os braços cruzados no parapeito e fica observando a cidade lá fora, um emaranhado de linhas retas e tons frios, fluxo lento de veículos, pessoas cruzando calçadas, e tudo ostenta um reluzir atípico, provocado pelos raios de sol horizontais e avermelhados do crepúsculo sobre a umidade das paredes, as poças d’água, o asfalto molhado. Tudo cintila. A vida da rua se desenrola solene, arrastando sombras alongadas. Ela acha bonito, inusitado.

“Tou me sentindo tão cansada, Pedro...”.

“É...?” ele responde através da música. E as palavras dele soam pegajosas, escorregam pra fora da boca. “O que é que tu tem?”

“Não é cansada. É de saco cheio. Sei lá por quê. É muita coisa na cabeça, tou cansada.”

Ele fuma tabaco deitado no chão, traga profundamente, vai soltando a fumaça enquanto canta junto com a música, de olhos cerrados. Ainda olhando pra rua, ela não tem certeza se ele ouve:

“Ás vezes tu não tem vontade de levar uma outra vida, não essa que tu tá vivendo agora?”. Recebendo como resposta apenas silêncio, ela prossegue, “eu não consigo parar de pensar nos outros lugares em que eu poderia estar, sabe? Pensar nas coisas que eu não estou fazendo, no que eu tou perdendo enquanto estou aqui. Nesse apartamento, aqui contigo”.
Ele abre os olhos tranqüilo e a encara como quem espera que ela prossiga.

“É chato isso. Por mais que eu trepe, coma, estude, dance, viaje, eu sempre tenho a sensação de que eu tou perdendo o melhor de tudo... tu não sente isso às vezes?”

“Sinto.”

Ela se encolhe um pouco de frio enquanto ele vira um resto de cerveja, engole e deixa a lata cair ao lado do corpo, junto a umas quantas outras. Acaba uma música e começa a seguinte, ele passeia a mão por cima do próprio peito despido e parece se concentrar no que ouve. Ela olha de novo pra rua.

“Nossa, a gente tá fechado nesse apartamento desde que começou a chover, Pedro, já te ligou nisso? Choveu desde sexta, faz dois dias já... a gente podia ter dado uma saída ontem. Tem vários filmes que eu queria ver...”

“Deita aqui comigo, Rafa...”

Ela não se move. Com exceção da música, tudo fica quieto por um minuto. Depois ela fala.

“Eu queria tanto fazer uma coisa diferente... tipo uma amiga minha que foi pra Londres estudar inglês, mas quando acabou o curso ela pegou um emprego num pub ou algo e ficou por lá um tempo, aí quando ela juntou mais dinheiro ela foi pra Praga e morou lá quatro ou cinco meses também, dever ser lindo!, Praga. Depois ela fez a mesma coisa e foi pra algumas outras cidades, Edimburgo, e umas outras... faz dois anos que ela tá nessas, esses dias recebi uma carta dela, ela tava sem grana nenhuma e foi parar num kibutz em Israel, tá lá cortando grama e colhendo laranja... porra, eu acho tão legal isso, me deu uma vontade de sair por aí, não precisava nem ser na Europa. Eu só queria dar um tempo dessa coisa meio óbvia de estudar trabalhar ir morar sozinha, toda aquela coisa que esperam da gente, e que eu mesma sem perceber acabo achando que é o caminho que tem e deu... tou meio enjoada da minha faculdade... desta cidade também. Eu queria ver esse pôr-do-sol que tá ali fora em outras cidades, me entregar a uma solidão provisória, conhecer outros mundos e pessoas, ficar um tempo longe desta coisa previsível, de tudo isso que parece pronto. De repente tudo isso me pareceu tão simples, e necessário... partir, pra qualquer outra coisa.”

Ele não diz nada, ela se vira e cobra: “Vem cá, tu tá me ouvindo?”

 “Tou” ele responde. E se desculpa: “Eu tou te ouvindo, mas eu tou meio bebum demais”... dá uma tragada no cigarro, murmura ainda qualquer coisa e se estica.

Ela enxerga ainda o lado de fora da janela, o sol já se foi, e há um pesado teto de nuvens de chumbo rosado sobre a cidade. Depois olha pra ele de novo, jogado sobre as almofadas, só de bermuda, arranhando o próprio abdomen e imitando como pode o lamento cristalino da cantora inglesa num falsete embriagado, encerrado no mundo particular de suas pálpebras fechadas, e pra ela parece ser impossível tentar saber em quê ele pensa, ou o que sente: tédio, medo, cansaço, a alma exausta, como a dela? Ou será que sente apenas o frio no peito, o álcool latejando nas têmporas, as sinuosidades desta melodia? Ela aprecia seu corpo magro, definido, e a pele levemente escura, então desce ao chão e deita-se ao lado dele, abraçando-o e sentindo sua respiração lerda, sente sua própria pele macia e aquecida pelo banho em contraste com a dele, gelada, arrepiada pelo vento que entra, surge o desejo, ela abocanha um de seus mamilos como quem faz uma oração, suga-o com uma lentidão precisa e acompanha atenta a maneira como ele reage, tudo ali se encerra, neste corpo que relaxa e retesa. Quando ela pára por um instante, pra olhar em seus olhos, percebe que ele caiu no sono.

Pausa. Uma nova música singra o ar melancólica. Ela se enrosca nele como pode, puxa seu braço e acomoda sua mão sobre o próprio ventre, quer sentir senão este leve peso sobre o púbis, a presença ali adormecida dos dedos no meio de suas pernas.

Lá fora a chuva recomeça, forte. A água respinga pra dentro do apartamento, mas ela já não se importa, e em poucos minutos também está dormindo. 

Daniel Galera
 

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