Parece um dia como qualquer outro.
Aqueles das pessoas que vivem na chamada urbe. Horário para despertar,
horário para sair, falta de tempo para tudo, tudo fora de horário.
Chega o elevador. O morador prepara-se
para entrar no plano dos passantes, dos veículos, das árvores.
Depois será uma sucessão de semáforos, buracos, obras,
rampas, escadas, até chegar ao ponto. Talvez, ainda, a caminho do
trabalho, pedras “no meio do caminho”. Nesse sobe-desce da vida, da bolsa,
do elevador, os planos são patamares que ressituam vontades, desejos,
posições, destinos. O elevador não é panorâmico.
O pensamento todo lá fora; a atenção, ali, dentro.
A porta do fosso, ou melhor, do andar fecha; a do elevador encarcera os
corpos. Uma pequena descida e ele pára. As luzes mantêm-se
acesas. A janelinha gradeada mostra tudo: parede, cimento, laje pura. Essas
engenhocas costumam enguiçar sempre no desnível, onde a porta
não abre, que não adianta abrir para um paredão imóvel.
O ocupante empalidece, tem um
curto-circuito mental. Leva tempo para dar-se conta do casal em pânico,
o qual também não nota o morador já convalescido.
Lá fora, o tempo segue
o seu ritmo implacável. No contêiner, acumula-se, as pessoas
envelhecem antes dele. O ar continua a entrar porque as aberturas não
deixam de existir. Mas é como se fosse preciso ir ao encontro dele.
Resiste a penetrar nos pulmões, a produzir atmosfera de O2 . A energia
para agüentar o tranco vai ficando rarefeita. Se faltar a elétrica,
os três podem ficar sem nenhuma.
“Capacidade licenciada: 420 Kg
ou 6 pessoas de 70 Kg”, a única leitura disponível. Nada
mais para enlevar o espírito ou reduzir a tensão de nervos.
Traçar planos... que planos? se só há um fixo. Os
cabos de sustentação ? três ? o morador havia
contado num dia de manutenção. Estava seguro de que a máquina
operava com redundância. Segundo o técnico da empresa, um
já era suficiente para suportar o peso dos presos.
Naquela última instância
do existir, a circunstância com que os hereges não contam
para se converter bate à porta. Tudo ali se investe de plenos poderes:
passos, conversas, um som distante, o aspirador de pó em uso. De
repente, as partes envolvidas no litígio abandonam o silêncio
e instauram um momento de descoberta. Acionam o alarme. Tantos o tocam,
que mais parece cabeça de santo em lugar de peregrinação
religiosa. Às vezes, para buzinar, outras para brincar de simular
acidente e outras, ainda, até por engano. O som, que já é
fraco, mais serve para consumo interno. É mais fácil escutar
as pessoas lá fora xingando a demora do elevador, recorrendo à
escada de incêndio, do que alguém tratando de estabelecer
o nexo causal com a ocorrência.
A estadia inusitada num espaço
tão pequeno ia degelando a contrição permanente de
condôminos em dias normais. Pouco a pouco, a clausura do acaso abre
portas para confissões íntimas e planos de fuga solidários.
O dia radiante, a vida sintomática
das ruas incitam a recomeçar a jornada interrompida. Meio-dia. Se
a tarde for inteira, o dia está ganho. O par se apressa para retomar
as pendências do dia anterior com os acréscimos do mal-começado.
O morador, aturdido, desnorteado, parece não encontrar a saída
da imobilidade.
— O senhor quer uma carona? –
sugere a mulher. — Para onde está indo?
— Não, obrigado.
Acho que vou almoçar e tirar uma sesta.
— Nós ainda estamos
com o café da manhã na garganta.
— Pois o meu virou água
de transpiração. Não vou arriscar nas águas
que podem rolar até o final do dia. — Não imagina como
nos ajudou a aliviar a aflição desta manhã.
— Verdade? E vocês também
não sabem como me ajudaram a manter o controle emocional. Francamente,
nem tudo foi tão monótono assim.
— Por que não aparece
lá em casa? — pergunta o marido. Seguidamente, vejo o senhor lendo
o jornal em sua varanda. Temos de nos visitar. Afinal, nesse mundo cheio
de intempéries, só mesmo os amigos trazem um pouco de consolo.
— Claro, isso mesmo. Qual
é mesmo o telefone de vocês? O meu e-mail está aqui
neste cartão de visita.