Desta vez não pretendo errar. Juliano não tem a arrogância do Mário, nem a auto-afirmação do Júlio, aquela coisa de toda a hora ter que provar que é macho, de querer fazer sexo em todos os meridianos e latitudes de meu corpo, não lembra nada da agressividade de Sílvio, no seu jeito de me jogar na cama e dar o grito do Tarzan, tão fora de moda, com todos esses heróis cibernéticos da atualidade para imitar, não tem nem de longe a grosseria de Sílvio, aquela de ter que arrotar depois de comer para justificar o sabor da comida.
Dessa vez estou armada. Não cairei na asneira de dormir com Juliano
na primeira noite, lembro-me de Mário dizendo na cama do motel,
depois da fome saciada, ainda entre dois beijos de sangrar os lábios,
sabe Clara, mulheres muito liberadas me transtornam um pouco, realmente
não sei se você dormiu comigo por amor ou se para provar que
o sexo é coisa resolvida para você. Depois desse papo louco
descobri o meu erro. Mário esperava justamente o contrário
do que eu havia feito. Então começou a acontecer o que acontece
quando o homem só está interessado em levar você para
a cama, tudo esfriou, começou a tortura mental, as coordenadas de
meu corpo já não o atraiam, todas as noites havia um serão
a cumprir, e entrei naquela de não mais saber o que falar Clara,
que tal um motelzinho depois do trabalho, um drinquinho, estou livre essa
noite, interessa ? Se dissesse que sim, lá viria ele com a acusação
da tal da atitude liberada, se dissesse não, ele cínico,
diria que havia aderido aos tabus dos anos 50. E daí para o fim
foi fatal. terminamos sem ao menos dizer adeus, o que foi um grande alívio
para ambas as partes.
Foi então que resolvi escrever o diário, para não
esquecer nenhum detalhe, para evitar de cair numa outra armadilha armada
não sei se pelo destino ou por mim mesma nessa via cruéis
em que me meti à procura do homem ideal. Com o diário poderei
analisar minhas falhas e as deles, será um sistema lógico
de decisões a serem tomadas.
Terça-feira 10 de março
Fevereiro passou rápido demais, mesmo tendo vinte e oito dias,
voou. Juliano viajou cm férias. Mas hoje esteve aqui em carne e
osso, e a noite foi maravilhosa. Comentamos o carteiro e o poeta, embora
tivéssemos visto o filme separadamente, as opiniões bateram,
principalmente quando falei sobre a pureza do carteiro, a sensibilidade
inerente naquele homem simples. Adoro os italianos, talvez tenha sido parcial.
Ou talvez o tenha comparado a Juliano. Foi nossa primeira noite, depois
de exatos trinta dias do primeiro encontro, fizemos sexo maravilhosamente.
Juliano consegue ultrapassar minhas barreiras quando fala do amor século
vinte, a era da pílula feminina, da sinceridade, sem o obscurantismo
dos anos 50. Não sei porque todos os homens preocupam-se tanto com
os anos 50, ou com os 60, 70. Nunca falam dos anos 90. Bem, nem todos podem
ser saudosistas, apenas os mais velhos, como Juliano que beira os
cinqüenta. O que lhe dá mais charme.
Terça-feira, 7 de março
Juliano entrou, tomou-me nos braços vigorosamente e num arroubo
mais de sensualidade do que de carinho, amou-me modernamente. Foi simplesmente
alucinante. É essa relação que interessa, o prazer
antes do dever, nada de cobranças, urna relação aberta
em todos os sentidos. Não quero prendê-la, diz Juliano, quero
que sinta necessidade de mim, sem obrigações ou horários,
essas convenções idiotas que impuseram à mulher e
que ela soube desafiar tão bem, e aí está você
como exemplo. Sinto-me como Joana D'Arc quando Juliano fala dessa maneira,
pronta para enfrentar o mundo. Antes de sair, abrimos um vinho tinto, o
único que restara da última compra e descongelamos um peixinho
no microondas. Creio que estou fazendo a coisa certa dessa vez. Juliano
despediu-se com um beijo molhado e assim que ele saiu corri para o diário.
Não quero perder nada.
Terça-feira 14 de março
O que aconteceu aos outros dias da semana? Percebo agora que só
vejo Juliano às terças. Bem, não vou começar
com grilos, afinal onde está a Joana D’Arc ? Juliano, agora somos
Juju e Nini, jogou-se no sofá, morto de canseira, coitadinho. Ah,
Nini, você é o verdadeiro descanso do guerreiro... essas coisas
que Juju diz me acabam, ele sabe me agradar. Abrimos um vinho branco, hoje
caprichei, fiz compras, comprei kani, ele diz que adora, para beliscarmos
frente à tevê. Foi uma noite tranqüila. Filmes, jornal,
e um boa-noite especial. As horas voam quando estou com Juju. Não
desisti de esperar pela sua vontade de ficar. Mas não vou sugerir.
Terça-feira 21 de março
Juliano esteve aqui. Trouxe alguns livros, pediu-me para guardar: A
Festa da salada, em japonês, Juliano surpreende-me sempre, A consciência
de Zeno, alguns policiais de Hammet, outros de auto-ajuda. - por que Juju
leria tais livros ? Parece-me tão seguro de si. Não vou perguntar,
o tempo me fará conhecê-lo melhor. Carpem die, Nini, lembra-se
do filme ? e antes que eu suspirasse já estava em seus braços.
Estou me mudando. Comecei pelos livros. Depois trarei as roupas, disse
ele. Mais uma terça-feira gorda. E sem cobranças da minha
parte, Juju acabou ficando essa noite, e o melhor, dizendo que ficará
as outras noites também. Esqueci de perguntar se só as noites
de terça. Bem, amanhã saberei. Uma coisa me intrigou quando
ele despediu-se logo cedo. Disse-me que não é tão
fácil conhecer as pessoas. Por que terá dito isso? Acho que
vou voltar a chamá-lo de Juliano.
Quarta-feira 22 de março.
Parece que só serão mesmo as noites de terça. Todos
esses livros me deixaram grilada. Talvez Juliano goste de mulheres eruditas.
Estou desprezando o meu lado cultural. Creio que me aprofundarei
na literatura, adoro os poetas ingleses. Acho blasé
falar sobre isso. Bem, acabo de descobrir que não conheço
Juliano. Estaria ele referindo-se a isso na outra noite ? Lembrei-me de
Yeats: Fiz a vontade do dragão até você chegar. Acho
que estou correndo no mesmo lugar. Se pensar friamente, bem, não
fiz progressos em minhas análises amorosas. Estou indecisa... Essa
de querer que Juliano more comigo... não sei, Sartre e Beauvoir
viveram tantos anos juntos em casas separadas. Bem, eram intelectuais outra
cabeça, europeus, não sentem a necessidade de sempre estar
se esfregando como nós os brasileiros, sangue quente...
Sexta-feira 24 de março
O convite chegou em branco e dourado. Refinado, chique, tradicional.
A cerimônia será na igreja Nossa Senhora do Brasil, na próxima
segunda.
Segunda-feira 27 de março
Não resisti. Queria ver com meus próprios olhos. A garota
convencional roubou Juliano de mim, sem armadura, apenas com um vestido
branco e um lindo e longo véu coroado por uma grinalda Uma
branca de neve levou Juju. Para bem longe. Está na hora de rever
essa minha análise, estudar novas linguagens. estou perdendo os
meus homens todos, preciso descobrir onde estou errando, compor novas falas.
Sábado 2 de junho
Ronaldo. Enfim um homem de verdade, comparando com os outros. Sei que
estou no caminho certo. O que faz uma mulher num bar gay ? Ele me perguntou
quando nos conhecemos. Juro, eu não sabia. Sabe quando a gente está
distraída, entra no primeiro lugar com as portas abertas? Achei
esquisito, tanto homem junto, mas tudo anda tão esquisito! Não
tive coragem de perguntar o que ele fazia num bar gay. Que homem! Disse
logo de cara que gostava de mim, sem arroubos sentimentais ou falas políticas.
Disse tão gostoso, Nini, (resolvi conservar o apelido dado por Juliano),
você é o verdadeiro descanso do guerreiro.
Terça 5 de junho
Ronaldo não quer saber de motel. Bem que gostaria de estar
numa piscina de motel, quentinha, relaxando,
aproveitando a sua masculinidade que vejo latente, desta vez não
vou precipitar nada. Dar tempo ao tempo. E bom saber que Ronaldo não
tem só sexo na cabeça. Ahre a porta do carro para eu entrar,
não é divino ? Fico pensando se gosta de crianças,
é tão amoroso. Traz fotos de seus primos na carteira. Interessante,
comentei quando vi sem querer as fotos, são todos da mesma idade
que você ? Pois é, e encerrou o assunto. Acho que ficou com
ciúmes, afinal homens lindos como aqueles...
Quinta 7 de junho
A era Juliano acabou definitivamente. Começa Ronaldo século
vinte. Que homem aberto, pra frente. Todas as noites no meu apartamento.
Vemos televisão, lemos jornal, ele me faz cafuné, me beija
no rosto, e depois vai embora. Minhas amigas me acham louca. Eu acho que
devo ir devagar.
Quinta 22 de junho
Não tenho escrito nada por falta do quê. Minha vida está
tão tranqüila Uma vez Juliano me perguntou porque eu tinha
essa mania de cozinhar, tudo bem, disse ele, você gosta, mas percebe
que é muito chato? Juliano era muito esquisito, detalhista, analisando,
agora eu percebo, dizia que parecíamos um casal casado há
cem anos, jantarzinho, televisão, relação mamãe-papai.
Quanto tempo perdido!
Sexta 23 de junho
Um ano com Ronaldo! Sem sexo! Jantar especial. Que droga. Ele chegou,
jantou. Veio com uma conversa louca dizendo que eu parecia uma loba pronta
para comer o carneirinho. Contou que a mãe o deixou quando tinha
quatro anos, disse que não sabia os detalhes, lembrava que a mãe
era uma intelectual, que eu estava demorando a perceber como ele realmente
era, nem todos somos anjos, todos temos nossos infernos, Nini, que ridículo,
esse apelido... Sabe que você me deu outra impressão ? Mais
fina, mais do mundo, só essa história do lar, é que
me chateou. Creio que não voltarei mais, Clara, isto é um
adeus. E foi-se! Ainda tentei impedi-lo, corri atrás dele, a ponto
de vê-lo abraçar um homem, um dos primos, entrar no carro
e partir!
Sábado 24 de junho
Chove! Dia horrível! Vou comer no restaurante por quilo. Até
achar a metade da minha laranja, alguém que goste de sexo e comida
caseira.