Caracóis

No dia seguinte Jane encontra Bob e pergunta a ele o que  havia acontecido. Bob parece fazer-se de desentendido e simples- mente não responde à pergunta de Jane.

Sempre que via aqueles caracóis se derretendo ao sol, Bob começava a delirar. Era como se nada mais existisse no mundo além dos malditos moluscos. Por que será que eles derretiam? Não eram feitos de plástico, como aquelas formigas que antes eram suas companheiras, mas ainda assim derretiam.

Por falar nisso, de que seriam então? Os pensamentos sem nexo percorrem lentamente toda aquela cabeça vazia. Bob parece hipnotizado. Jane insiste:

— Se você não me disser o que aconteceu, eu juro que nunca mais falo com você.

(Pequena pausa)

Agora ela já fala aos berros:

— Bob, você está me ouvindo??? Tem alguém aí dentro dessa  cabeça oca?? BOB, QUER ME DAR ATENÇÃO?

Só assim Bob acorda, e lentamente volta os olhos na direção daquela escandalosa garota. Não era culpa da Jane, não era culpa de ninguém. Ela não merecia saber. Ela não poderia sofrer por causa daquilo tudo. Bob acha melhor desconversar:

— Não aconteceu coisa alguma, Jane. Nada, nada.

— Sei. E por que você está assim comigo?

— Assim como?

— Sei lá. Assim. Apático.

 E daí se a culpa não era dela? E daí? Ninguém mandou ela ser sua amiga. Bob volta a observar os caracóis. Agora não mais os moluscos. Bob se perde nos caracóis dos cabelos castanhos de Jane. Viaja na imensidão do mar azul de seus olhos.

Os pensamentos voltam. Bob sente-se tentado a dizer tudo.  Pega nas mãos de Jane. Estremecem. Pensa: "Ela tem que saber. Ela  tem que saber de tudo. Ela vai sofrer, mas é direito dela. É minha  obrigação contar-lhe."

Bob estava agora decidido. Tenta começar de forma amena:

— Jane, você é minha amiga?

— Mas que pergunta...

— É minha amiga ou não?

— É claro que sou, Bob. Conte sempre comigo.

— Então você vai ter que saber.

— Mas é óbvio! É justamente isso que eu estou perguntando. O que aconteceu?

— Bem, lembra daquele dia em frente aos coqueiros?

 — Sim, a gente estava jogando baralho, com o Paulinho e  o Júnior.

— Pois é. Eu preciso confessar uma coisa. Eu tinha um  ás de espadas extra, escondido na manga do meu paletó.

Jane estava perplexa:

 — Mas é só isso? Todo esse drama só por causa disso?

As mãos ainda se entrelaçavam. Isso acontecia naturalmente quando eles estavam sozinhos. Bob confessa:

— Na verdade não é só isso. Tem algo mais...

Jane abre lentamente sua boca. Cerra os olhos suavemente.  Bob precisava admitir: o que ele faria a seguir seria um  ato de extrema coragem. As mãos se libertam, finalmente.

A boca parada, semiaberta. Os olhos fechados, totalmente.

Os mares azuis se escondiam atrás das pálidas pálpebras. Jane era  ainda mais linda assim. Bob toma coragem. Chegou a hora.

Com o polegar direito, abre a boca de Jane. Com a mão esquerda, empurra o caramujo vivo para dentro daquela caverna sensual.

É nojento. Jane nem nota. Talvez nem tenha percebido que  aquilo não era uma língua humana, mas sim um molusco asqueiroso. É claro que Jane não percebe. Jane é nojenta. Mais nojenta que o coitado do bicho que é agora deglutido inteiro.

Finalmente a garota abre os olhos. O pobre animal sofre  com a acidez do estômago. Bob fita Jane, cujos olhos azuis brilham de contentamento. Ela quer mais.

Bob abre a bolsa. Retira a Magnum 44. Mata-se com um tiro na boca.

O mistério persiste.

Eréke
 
 

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