A SEREIA E OS PEIXINHOS

A Sereia chamou os doze peixinhos trágicos para conversar em  assembléia à luz do luar e disse ao primeiro:
 
—  Cascudo, você é fogo! Por mais que eu lhe avisasse para ficar quieto,  de boca calada, você saiu por aí falando para todo o mundo os segredos dos  mares. Você devia mais era cuidar dos seus afazeres, do seu departamento e  não ficar por aí fofocando só para sair em manchetes de noticiários. Quanta coisa você poderia fazer para baixar a inflação, para reduzir as taxas de juros, para incrementar a exportação e ativar o turismo! Enquanto isso, você ficou em reuniões e bate-bocas estéreis que só denigrem a imagem da minha administração.
 
Os peixinhos trágicos se entreolharam desapontados com a pauta  daquela assembléia. O peixe Cascudo nada disse para se defender porque tudo  aquilo que a Sereia falava era pura verdade e não tinha contestação. A Sereia continuou:
 
— Bacalhau, deixe este sorriso de falsa Mona Lisa e escute bem o que eu  vou dizer:
 
Bacalhau mudou imediatamente sua postura, se compenetrando como  um dos altos representantes dos mares. Consertou o sorrisinho leve e debochado, e passou a escutar atentamente o sermão da Sereia.
 
—  Você é pior do que o Cascudo porque, além de cabeça dura, você é teimoso e de vez em quando fede. Quantas coisas estão podres no meio ambiente por sua causa?... O desflorestamento das algas marinhas, as areias movediças do fundo do mar, as rochas sem recifes nem corais, tudo, tudo esculhambado sem nenhuma direção porque você não toma providência alguma. O que você já fez para impedir que os detritos fecais da Mãe Terra sejam lançados aos sete mares? Qual a providência que você tomou para que as indústrias poluentes deixem de despejar refugos de metais em nosso meio ambiente? Enorme quantidade de zinco, chumbo, cádmo, cromo, cobre e mercúrio são lançados diariamente aos nossos narizes e nada você faz, ou melhor, você só faz nadar. Olhe os bagres, os camarões, as tainhas, os mexilhões, as corvinas e as piraúnas, estão todos envenenados, todos contaminados num cenário sem precedentes.
 
Os peixinhos aquiesceram em coro, balançando as cabeças:
 
— Isto é muito sério, isto é muito sério.
 
A Sereia chamou então o peixe Espada e falou:
 
— Espada, até você?...
 
Com esta pergunta o peixe Espada tremeu o corpo todo e não soube onde botar o seu nariz.
 
— Sua área é militar, Espada, e pare de ficar se metendo em infra-estrutura, economia e outras coisas. O velho tempo já passou e tudo vamos fazer para que este tempo não volte mais. Você e seu cardume só tem que defender as bordas marinhas e zelar pela segurança interna dos fundos dos mares.
 
A Sereia não se contentou e chamou a  Baleia, que, como todo mundo sabia, era sua prima-irmã, e foi dissertando com intimidade:
 
—  Baleia, todos sabem do nosso relacionamento co-sanguíneo, mas isso não impede que eu lhe esclareça certos pontos. Não foi à toa que eu nasci uma sereia - metade mulher, metade baleia — e também não foi à toa que Netuno, o deus dos mares, me nomeou para tomar conta desta bagunça por tempo indeterminado. Essa nomeação foi ratificada por todo mundo em eleições diretas e você especificamente foi o meu braço direito numa campanha aberta e democrática. Quando eu lhe escolhi para tomar conta do bem-estar social e da segurança previdenciária, tinha certeza do tamanho da sua capacidade de resolver todas as mazelas que permeiam os fundos dos mares. Olhe a opinião pública, por favor. Não podemos suscitar dúvidas quanto à nossa probidade. Que dirá o grande deus Netuno quando souber que as piranhas em  bando andam comendo tudo o que lhes passa pela frente sem distinção de idade nem  sexo?
 
Os peixinhos não sabiam mais como abanar os rabos e, quanto mais água bebiam, ficavam mais sedentos. A Sereia continuou o seu discurso falando de peixinhos adoslescentes envolvidos em altas operações de drogas e violências, peixinhos crianças enrolados em tramas pornográficas, peixinhos idosos metidos em corrupção, negociatas, operações danosas e fraudulentas, e tudo mais que pudesse desestabilizar um comportamento social condizente com as estruturas marítimas. Depois chamou o peixinho encarregado do setor habitacional e desenvolvimento econômico e, de forma clara e contundente, disse que ninguém, ninguém mesmo estava autorizado a agir à revelia, construindo arranha-céus no fundo dos mares e projetanto pontes e viadutos sem nenhuma utilidade. Quanto desperdício de verbas num tempo em que dinheiro estava tão curto para pagar os juros e as dívidas com o Céu e a Terra! Por causa deste mal hábito administrativo, ela teria de lançar mão de medidas extremas e decretar que no mar, tempo nunca é dinheiro.
 
Finalmente, a Sereia chamou o peixinho Dourado e falou com um sorriso amigável:
 
Dourado, apesar de todas as injustiças praticadas no fundo destes mares, você é o único que merece uma palavra de elogio. É notório o seu esforço em acabar com os esquadrões de extermínio, com o grupo de seqüestradores irresponsáveis, com as leis protecionistas dos cartéis. Embora tudo continue na mesma coisa de antigamente, pelo menos vejo emanar de você um grande esforço.
 
O peixinho Dourado, envaidecido com o elogio, foi logo abrindo as guelras e começou a cantar:

 A Sereia imediatamente deu um pulo para fora d’água e os peixinhos a acompanharam em cortejo. Já na areia, todos dançaram, acenderam velas brancas, cantaram, fumaram charuto e tomaram champanhe em copinhos de plático. Assim passaram a noite se divertindo.
 
Quando, afinal, a lua envergonhada se escondeu do clarão do sol que  surgia tinindo de tão quente, todos se lançaram na água e foram para o fundo do mar onde tudo continuou a mesma coisa por muitos e muitos anos. 

Fernando Tanajura Menezes
 

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