É VERDADE, E DOU FÉ

A campainha toca, tirando-lhe do sono recém iniciado. Perguntando-se quem poderia procurá-lo àquela hora, embora não tivesse noção da hora, foi até a porta colocando sua cara de sono, cabelos desgrenhados e olhos querendo fechar, a disposição do olho mágico.
No outro lado, um rosto paciente, bonito, aguardava com uma serenidade, como que tivesse a certeza de que seria atendido. Ficou intrigado.
Por via das dúvidas, pediu que esperasse. Ainda demorou um pouco, olhando aquele rosto que não mudara em nada sua expressão, diante do seu pedido de espera. Quem seria? Que queria?
...
A campainha toca, tirando-lhe do sono recém iniciado. Foi até a porta, deu uma olhada rápida no olho mágico e abriu. Alguma coisa lhe era familiar naquele rosto.
— Bom dia, entre!
— Obrigada. É o Sr. Tibério José Rocha?
— Sim. E você, quem é?
— Magda Oliveira, Oficial de Justiça. Estou lhe trazendo uma intimação.
— Intimação??
— Sim. O Sr. foi indicado como réu numa ação de alimentos que a Sra. Maria Lúcia Farias está movendo contra o senhor, e o juiz expediu essa intimação para que o Sr. compareça à audiência.
— Bem, primeiro você poderia me tratar só por você; depois, eu não tenho conhecimento dessa ação, nem conheço nenhuma Maria Lúcia Farias. A mãe de meu filho chama-se Luiza Maria dos Santos e não lhe devo nada. Não estará havendo um engano?
—  Acredito que não. Aqui consta sua identificação e endereço. Mostre-me sua identidade, por favor.
— Vamos ver!...
... Como dá pra perceber, você me tirou da cama. Espera um pouco enquanto passo uma água no rosto e faço um café? Você bem que poderia tomar o café da manhã comigo. Falar nisso, que horas são?
—  São nove e meia. Pode ir lavar o rosto, eu espero.
—  E o café?
— Aceito, também. É difícil encontrar tanta boa vontade em minha profissão.
—  É... você não deve ser muito bem vinda, por aí, não é?
— Na maioria das visitas que faço não sou bem recebida, mas isso faz parte do meu ofício. E o senhor, o que faz?
— Faço qualquer coisa. Principalmente se você parar de me chamar de senhor.
— Está bem. Mas o senhor, ou melhor, você trabalha com quê?
—  Sou motorista de taxi.  ... você é muito simpática...
—  Obrigada.
—  Não agradeça.
Vou fazer o café. Não tenho muita coisa, mas um café com pão e um pedaço de queijo, dá pra arranjar. Certo?
—  Não se preocupe. tomarei apenas um cafezinho, Já fiz meu desjejum há um bom tempo. Acordo cedo, esta é a terceira visita que faço, e ainda tenho duas para fazer hoje.
—  Puxa, que horas você começa a trabalhar?
—  Não tem hora certa. Hoje, seis e meia estava na rua. Meus horários dependem do que eu tenha para fazer. Nem todos me recebem com tanta gentileza.
Em alguns casos a gente precisa ficar esperando que a pessoa apareça.
Há casos em que a gente passa a noite na porta da pessoa esperando que ela chegue em casa.
—  Me ajuda aqui. Pega essas coisas e leva pra mesa. Tem queijo aí, na geladeira.
As coisas aqui são meio espartanas. Moro só, trabalho a noite e nem sempre tenho tempo de manter a casa arrumada. Normalmente acordo depois das onze. Hoje foi diferente porque você apareceu...

Em sua voz havia algo de insinuante que ela compreendeu muito bem e manteve o jogo...
Sentaram à mesa, deixaram um pouco de lado o assunto que a trouxera até ali, e começaram a conversar amenidades. Ela falou um pouco de sua vida, de sua profissão e expectativas. Formada há alguns anos, fez concurso para Oficial de Justiça, ocupação que exercia há três anos. Já encontrara algumas tarefas difíceis, outras nem tanto, mas até então, disse-lhe, nenhuma tão gentil como aquela. Também morava só, num pequeno apartamento no centro da cidade. E tinha queixas e elogios à situação, bem parecidos com os dele.
Durante o café começou a chover. E o clima tornou-se mais intimista ainda. O dia escureceu um pouco, tornando o interior daquele apartamento mais aconchegante. Terminado o café, levaram as coisas à cozinha e ela ofereceu-se para lavar os copos, enquanto ele limpava a mesa.
—  Esse apartamento não é grande para quem mora sozinho?
—  Não. Não acho. Tem somente dois quartos  e, as vezes fica pequeno.
A cada quinze dias meu filho vem passar o fim-de-semana comigo e é sempre um problema de espaço.
—  Mas e o outro quarto, que você faz dele?
—  Venha ver. Vamos conhecer o resto do barraco.
A sala e a cozinha você já conhece. Aqui o banheiro, aqui o meu quarto e esse aqui o segundo, que está cheio de entulhos. Eu o uso para guardar coisas e, de vez em quando, entalhar alguma coisa em madeira. Por isso é essa bagunça, e não dá para botar o menino para dormir aqui. Tem muita poeira.
— Isso aqui foi você que entalhou?
— Sim.
— Bonita! E você vende?
—  Não... é uma espécie de terapia. Gosto de transformar a madeira. Nunca expus.

No meio daquela bagunça, estavam tão próximos um do outro que um leve toque foi inevitável. E foi como se uma centelha os tocasse. Um rápido e silencioso olhar disse tudo e trocaram um primeiro beijo. Uma chama acendeu e trocaram mais um beijo, e outro e mais outro...
No quarto, roupas espalhadas, corpos satisfeitos, deitados, saciados, um ao lado do outro. Mas ainda queriam mais. Leves toques exploravam aquele universo novo,  aquela geografia tão suave, cheirosa, sedenta. ainda ficaram deitados por um tempo, trocando toques e sorrindo a cada descoberta. Coxas se misturavam, peitos batiam uníssonos, lábios se procuravam ávidos. Pêlos se eriçavam a cada toque, a cada insinuação. E qual crianças, inventavam novas brincadeiras, enquanto exploravam seus corpos, a procura de, quem sabe, um lugar ainda não tocado, não amado.
Mas o tempo é inexorável e não deu nenhuma trégua àqueles amantes. Tinham que levantar — ela, principalmente — e adiar novas descobertas para, quiçá, novo encontro.
Foram tomar banho e foi outra festa. Se banhavam mutuamente e pareciam, cada vez mais, crianças brincando. Nunca um banho foi tão curto e tão demorado ao mesmo tempo.
Mas já era hora de parar a brincadeira.
Ela arrumou-se, tomou mais um café enquanto se preparava para continuar seu trabalho e suas visitas. Ele vestiu apenas a cueca, e sentiu-se gratificado por aquela manhã. Também tomou um café, acendeu um cigarro, e ainda trocaram algumas carícias, lamentando ter que parar. Sentia-se tão próximo dela, era como se a conhecesse de algum lugar.
—  Não nos conhecemos de algum outro lugar? Você me parece tão familiar. Parece que já te vi antes.
—  Esta manhã no olho mágico. Você me pediu para esperar e sumiu. Mais de meia hora depois, voltei a tocar a campainha, e só aí você atendeu. Não fui embora porque na minha profissão é comum as pessoas se esconderem de nós.
—  Ah, se eu soubesse não teria perdido aquela meia hora.
—  Bem, mas você precisa assinar essa intimação. Afinal, foi por isso que vim até aqui, lembra?
—  É. E quando nos veremos outra vez?
—  Quem sabe, quando você for intimado outra vez!
—  E que é que eu faço para ser intimado todo dia?
—  Não sei. Mas é bom lembrar que eu não sou a única Oficial de Justiça por aqui. Tem alguns colegas bem menos simpáticos.

De repente, a formalidade voltara a tomar conta do diálogo. Ele assinou a intimação, trocaram mais um beijo e despediram-se. 

Carlos Barros
 

 

« Voltar