Tudo agora se parece factício
e irreal, contudo meu coração ainda sente com a mesma força
todas as emoções. Talvez escrevê-las não seja
a solução, mas preciso dividi-las com alguém. Quem
sabe ao ler minhas recordações e tormentos possa criticá-los
e enfim livrar-me deles. É tudo que me resta: acreditar na ridicularidade
do que tem sido minha vida, rir-me dela e seguir em frente.
Não escrevo essas
coisas com intenções de serem lidas por outrém, muito
pelo contrário, não quero que ninguém as veja. Se
contudo, me fosse dado a chance de que a pessoa de quem vou falar pudesse
lê-las, mesmo que sem me perdoar, estaria mais aliviado então.
Escrever o que se passou
pode ser fácil, mas duvido conseguir passar pro papel o que nem
em palavras consegui colocar.
Quando vi Sara pela primeira
vez, era um adolescente de dezessete anos, recém saído dos
cueiros. Rapaz bobo, com mais qualidades físicas do que intelectuais.
Estava eu assentado nessa mesma rede olhando as pessoas que passeavam na
Praça da Matriz — como era de costume aos domingos. Olhava sem grande
entusiasmo os mesmos casais de namorados, os mesmos pirralhos correndo
por entre as pernas das mães que fofocavam sobre as últimas
da semana. Tudo a mesma monotonia de sempre. Paisagem interiorana. Vento
de inverno. Férias escolares.
Ela apareceu como um bálsamo,
como um êxtase em meio a dor. Cara de menina num corpo de mulher.
Dela emanava uma luz natural, uma presença de espírito. Sorria
das brincadeiras das amigas que a acompanhavam. “Menina da cidade, com
certeza nunca vai saber quem eu sou”, pensei comigo.
Decidi não olhar
mais para ela. Evitar a tentação é mais fácil
quando não a temos na mente. Como arrancado de um transe, peguei
minhas coisas e entrei pra casa. Procurei me ocupar de tarefas, mesmo que
não muito agradáveis, como arrumar meu quarto. Aos poucos
aquela imagem irreal — a da moça sorrindo — foi me deixando em paz
e eu retornei à minha rotina. O domingo transcorreu igual a todos
os outros... Almoço na casa da vó, televisão com os
primos, passeio, à noite, com os amigos do colégio.
O lugar escolhido para o
passeio foi um dos pouquíssimos existentes na cidade. Também
as conversas eram sempre as mesmas, os casais sempre os mesmos, as paqueras
sempre as mesmas. Tudo sempre igual. E eu sempre o mesmo. Tímido,
indiferente, conformado, sobrevivente.
Já tinha tido algumas
namoradas, mas nada sério. Ou eram elas que me cansavam ou eu que
as decepcionava. No meu pouco tempo de vida aprendi a não esperar
muito do namoro e até o considerava uma prática um tanto
insólita.
Cheguei ao bar e pedi minha
Coca. Agora meus amigos já não riam mais de mim quando, ao
lado das suas cervejas e vodcas, vinha minha garrafa de refrigerante.
Porém, ao pegá-la no balcão senti olhos intrigados,
um tanto piedosos, me olhando calados. Tive medo de me virar e saber quem
me consumia com aquele olhar, já não queria enfrentar nada
de diferente em minha vida. Tinha me acostumado a dizer sempre as mesmas
palavras, a olhar sempre as mesmas pessoas, a praticar sempre as mesmas
ações, a sentir sempre as mesmas emoções.
Mas a curiosidade foi maior
e dei de cara com a moça da manhã. Por alguns momentos fiquei
sem reação e ela entendeu isso como “enfrentamento” à
sua ousadia. Senti que a tinha deixado sem jeito, o que era uma novidade,
pois sempre eram as pessoas que o faziam comigo. Tomado por uma compaixão
inexplicável tentei remediar o mal que por ventura poderia ter causado
àquela criatura, encantadora criatura.
— Da geração
Coca-Cola... conhece? — disse tentando parecer natural e
olhando para a garrafa em minhas mãos.
— Oi! Não tenho nada
contra coca-cola, desculpe se pareci zombar de você. respondeu
com o mesmo sorriso que vira em seu rosto pela manhã. Naquele momento
me convenci de que aquele sorriso poderia me fazer correr o mundo para
tê-lo novamente.
— Não. Tudo bem,
não quis parecer grosseiro, mas é que sempre espero a reprovação
dos outros.
— Pois não
deveria, é muito bonito para ser reprovado. — e outra vez o sorriso
iluminou seu rosto que percebi perfeito.
— Não faça
isso, não sei o que responder. — disse sem jeito, olhando para meus
pés, procurando algum buraco para me esconder.
— Então, me diga
seu nome.
— É Davi e o seu?
– Respondi mais à vontade do que costumava ser com qualquer pessoa.
— Me chamo Sara.
— Bonito nome. Nunca te
vi por aqui...
— É a primeira vez
que venho. Estou na casa de uma amiga passando uns dias, aproveitando as
férias.
— Você é da
capital? — Ela concordou com a cabeça e continuei minhas interrogações
— Quem é sua amiga?
— Ela se chama Ângela,
conhece?
— Sei quem é, mas
não conversamos muito. Ela estuda na sala ao lado da minha... —
e antes que pudesse terminar minha resposta a amiga chegou chamando Sara
para irem para a única boate da cidade.
— Oi, Davi. Já conheceu
minha amiga? — Falou com ironia e pude ler em seu pensamento o que realmente
queria dizer “Teve a ousadia de mexer onde não foi chamado?”.
— Oi, Ângela. — Foi
tudo que consegui dizer ao voltar à minha realidade.
— Você não
quer vir com a gente? — Indagou Sara reconciliadora.
— Mais tarde talvez eu vá.
— Esta foi a última frase que lhe disse aquela noite, pois
não tive coragem de ir à boate. Não tive coragem de
chegar perto dela outra vez. Me sentia um capiau burro e sem atrativos
para uma moça da capital.
Fui para casa depois de conversar um pouco com os amigos que não
sabiam falar de outra coisa que não fosse minha conversa com a “estrangeira”.
Houve até quem dissesse que passaria a tomar refrigerante a partir
daquele dia, afim de ter mais sorte com as garotas. Todo aquele papo me
pareceu tolo demais, embora fosse o único que conhecesse.
Durante toda a noite
revirei na cama e só bem tarde consegui pregar os olhos. Naquela
noite alguma coisa havia mudado dentro de mim, embora eu nem imaginasse
o que estaria por vir. Embora eu acreditasse que aquela conversa com a
menina da capital tivesse sido apenas educação de sua parte.
A Segunda-feira amanheceu
fria, como todos os outros dias daquele julho seriam, mais frios do que
de costume. Levantei tarde e me entreguei ao ofício da preguiça.
Minhas férias eram sempre assim e a maior parte delas passava sozinho
em casa, pois sempre minha família viajava e poucas eram as vezes
em que animava acompanhá-los.
Gastava meu tempo comigo
mesmo. Nessa época ainda tinha a ilusão de mudar o mundo
e fazia planos. Imaginava um futuro que nunca cheguei a viver. Pensava
no ano seguinte, nos dez anos seguintes. Imaginava minha vida fora dalí.
Na verdade, queria terminar o colegial e tentar uma faculdade na capital.
Por lá encontrar amigos diferentes dos que conheci por aqui, viver
minha vida com mais vontade do que a vivia.
Durante toda aquela semana
vi, de longe, Sara passear pela cidade, sempre rindo e acompanhada por
algumas pessoas. Parecia muito agradável, mas suas companhias me
faziam, por vezes, desconfiar disso. Mais tarde, essas mesmas pessoas passaram
a me considerar e mudei de opinião sobre elas — terrível
engano.
Tive vontade de conhecê-la
melhor, saber sobre a capital — na qual só havia ido algumas vezes
—, perguntar o que fazia, do que gostava, o que estava escondido atrás
daquele sorriso... Mas sempre minha vontade era superada pela certeza do
meu insucesso.
Chegou o final de semana
e fui ao encontro do meu refrigerante. Estava cansado de ficar em casa
e tinha esperança de vê-la novamente. E não sei se
por sorte ou azar a encontrei na mesma ocasião da outra vez — quando
pegava meu refrigerante no balcão do bar.
Dessa vez a conversa durou
bem mais. Vi meus amigos e os dela indo embora, vi minha garrafa esvaziando
várias vezes e seus drinks se sucedendo. Descobri muito sobre ela
naquela noite, muito mais do que esperava e do que poderia vir a saber.
Sara era um ano mais velha
do que eu. Era sincera e sensível, sua postura era de uma pessoa
muito vivida ou muito superior, sei lá. Não sei se a sensação
que me passava era de ingenuidade ou indiferença pelas coisas ruins
do mundo e das pessoas. Enfim, me enchia de confiança a sua presença.
Confiança em mim mesmo, na vida, na sua sinceridade e nela mesma.
No final da noite nos despedimos
muito a contragosto, mas combinamos em nos encontrar no dia seguinte.
Seria muito sarcasmo querer
colocar em palavras tudo que aprendi com ela naqueles dias. Tudo aconteceu
muito naturalmente, nos tornamos muito ligados. Era como se durante toda
minha vida tivesse estado dormindo e só ao conhecê-la tivesse
acordado. Por muitos motivos Sara me marcou, até mesmo por ser eu
muito jovem na época, mas acredito que mais ainda porque ela
me despertou...
Chegou o dia dela ir embora
e eu voltei às minhas atividades, inconformado com sua partida e
ciente que tudo não passaria daquilo — muito para mim, talvez nada
para ela.
Me surpreendi quando chegaram
suas cartas e seus telefonemas. Não me contive quando a vi descer
do ônibus dois meses depois.
Ela já fazia parte
da minha vida então. Suas vindas eram esperadas com ansiedade. Nosso
namoro se tornou “público” e com ele vieram as opiniões,
as intrigas. Éramos fortes à isso, não dávamos
ouvidos, mas éramos jovens...
Passei a ser lembrado pelos
amigos e me cumprimentavam os que antes me viravam a cara. Minha Coca ao
invés de infantilidade foi rotulada de “charme”. Algumas garotas
cochichavam quando eu passava. Enfim, passei do desinteressante ao interessante
em questão de dias. Toda essa mudança não acontecia
por minha causa nem pela pessoa de Sara, mas pelo fato de estarmos namorando.
Mudei muito a partir de
então. Passei a gostar e a confiar mais em mim. Me sobressaí
nas coisas que fazia e me sentia especial.
Agora Sara não parecia
superior a mim, aliás descobri nela muitas fraquezas. Éramos
iguais e seguíamos juntos. Apesar da distância éramos
ligados e felizes.
Juventude. Linda época
se não fosse a ignorância, o sentimento de imortalidade e
a inconseqüência...
Não sei quando tudo
mudou, nem porquê. Não sei em que momento passei a me achar
um bobo por confiar na menina da capital, não sei porque passei
a estranhá-la. Ela era a mesma, sempre ela mesma, mas eu mudei.
Tudo que ela me ensinou a ser — confiante, vivo, feliz — eu usei contra
ela.
Meu “charme” foi substituído
por doses homéricas de vodca e eu passei a ser “o melhor”.
Não hesitei em traí-la durante meus “porres”, e fiz isso
muitas vezes. E, por vezes, chegavam essas notícias em seus ouvidos
e ela me ligava indignada com a pequenez das pessoas e dizia que
não havia motivos para acreditar nelas.
Eu ria-me disso, me
sentia o “Todo poderoso” e comentava com meus novos “amigos” como ela era
ingênua e apaixonada, como estava em minhas mãos...
Não conseguia enxergar,
na época, o mal que fazia a ela e a mim. Como estava iludido...
Depois de alguns meses sem
poder vir me ver e conformada com minha resistência em ir vê-la,
ela chegou. Estranhou o fato de não ter ido buscá-la na rodoviária
como de costume e se foi sozinha para a casa da amiga em que sempre se
hospedava.
Chegando lá soube
da novidade e teve ímpetos de não acreditar, mas eu a confirmei
assim que nos encontramos à noite.
Uma das minhas traições
resultará em um filho e alguma coisa de correto ainda sobrevivia
em mim. Me casaria no próximo mês.
Ainda me lembro de suas
palavras calmas, ainda que embuídas de uma grande mágoa.
“Por muito tempo tive pavor de conviver com qualquer sentimento de perda,
até o dia em que descobri o que ele significa realmente. Que mais
do que não ter, era ter tido e no “ter tido” está a capacidade
que se tem de ser ou ter. Essa capacidade não se perde, apenas se
modifica, como modificam-se as coisas a conquistar. Perder algo não
significa incompetência ou fracasso, mas a constatação
estupefata de que todas as coisas têm seu tempo exato de vida — nem
mais, nem menos — e a nós só nos resta lidar com isso, o
tempo. Só espero que você seja feliz e lembre-se que eu sempre
te amei de verdade e, por ingenuidade ou muita credulidade no lado bom
das pessoas, continuarei amando aquele que conheci um dia, embora já
não possa reconhecê-lo. Você está fazendo a coisa
certa. Adeus...”
Suas palavras me emudeceram
como pensei não serem mais capazes. A verdade é que perto
dela eu voltava a ser apenas um tolo. Sem querer justificar qualquer das
minhas atitudes, talvez tenha sido esse um dos motivos que me fizera agir
assim. Admirava tanto a sua pessoa, acreditava ser ela tão melhor
que eu, em todos os sentidos, a amava tanto que só conseguia me
sentir melhor se a destruísse. E eu tinha que me sentir melhor de
alguma forma...
Ela não deu tempo
para que eu dissesse qualquer coisa e acho que eu não conseguiria
mesmo. Se virou e nunca mais a vi...
Me casei e me mudei para
capital, mas nunca voltei a vê-la. Nem notícias consegui obter.
Em uma das minhas muitas noites de solidão ( solidão dos
que não têm a si próprio por companhia) que enfrentei
durante meu casamento, disquei seu número, mas soube da voz que
me atendeu que o telefone havia sido vendido quando a dona mudou-se da
cidade.
Acho que aquela noite foi
a primeira vez que consegui sentir realmente o que tinha feito da minha
vida. Percebi que alguma coisa se perdera no caminho e que tudo que ficara
foi a saudade. Saudade que carrega o valor tardio da coisa perdida... Alguma
coisa deixara de importar. Talvez tenha sido a própria vida, como
se viver fosse simplesmente o que já passou.... Bem certo é
o poeta que diz que pior do que ter saudades é não tê-las,
porém é igualmente cruel acreditar que possa ser benefício
tê-las em abundância.
No dia seguinte olhei meu
filho com outros olhos, passei a amá-lo mais. Tornamo-nos inseparáveis.
Segui meu caminho e zelei pelo meu casamento que, acredito, estaria durando
até hoje não fosse a fatalidade que me deixou viúvo.
Minhas noites já
não eram mais solitárias. Agora Sara vinha me fazer companhia,
através de imagens, palavras e gestos que criava em minha mente
e que me enchiam de vontade de viver.
Passei oito anos de minha
vida levantando pela manhã só pensando em chegar a noite
para pensar em Sara, enquanto fumava meu último cigarro.
Quando minha mulher faleceu,
ao contrário do que se possa imaginar, não me senti aliviado.
Ela nunca fora um fardo para mim, eu mesmo é que havia sido... Chorei.
Chorei muito. Chorei as lágrimas de todos aqueles anos entaladas
na garganta. Chorei por ela, por sempre ter se contentado com meu eu incompleto;
chorei pelo meu filho que teria apenas a mim a partir de então —
e quão pouco ele teria; chorei por Sara, por tudo que meu egoísmo
teria causado em sua vida; e chorei por mim, por tudo que não fora,
por tudo que fizera e por tudo que deveria vir a ser....
Senti falta de minha esposa,
mas era a imagem de Sara que me fazia companhia. Soube, então, que
ela se tornara médica e trabalhava com pessoas carentes em regiões
pobres do país. Nunca havia se casado...
E, ainda agora, prefiro
acreditar que ela me espera em algum lugar. Prefiro pensar que minha vida
inteira tenha sido somente “uma fase” e que ao acordar um dia eu perceba
que tudo mudou; que tudo ficou colorido e tranqüilo e que as coisas
tenham finalmente algum sentido para serem.
Eu prefiro acreditar que
tudo foi um equívoco. Prefiro imaginar como tudo se resolve no fim
e como sua presença me fará esquecer tudo que tenho sido.
Que sua presença me faça melhor do que jamais fui. Que seu
sorriso me devolva a confiança em mim mesmo. Que eu possa, assim,
voltar a confiar nessa ínfima experiência — viver.
Eu prefiro enxergar a beleza
das coisas. Prefiro aceitar que é o amor que move o mundo. Prefiro
esperar que ele, enfim, venha reger minha vida, ou prefiro me ver curado
dessa doença chamada solidão e que só vê
como cura ser amada.
Eu preferiria não
ter precisado escrever isso...