Alma caridosa

Sara Célia era mãe solteira. Sua filhinha, Fabiane, ainda não tinha nem um mês. Se, por um lado, o bebê era a alegria da sua vida; por outro, se tornara um empecilho para que Sara Célia pudesse trabalhar. Nenhuma casa de família aceita empregada doméstica com filho recém-nascido de contrapeso. Disto ela estava cansada de saber. Não tinha família viva nem ninguém a quem recorrer. O pai da criança sumiu no mundo assim que soube que ela estava grávida. Mas não perdia as esperanças. Quem sabe não apareceria uma alma caridosa capaz de ajudá-la a sair da situação embaraçosa em que se encontrava? Era jovem ainda. Batalhava desde menina. Nunca lhe faltara coragem para trabalhar. Por isso não desistia. Já tinha até perdido as contas de quantas portas levara pela cara só naquele dia. Restava apenas um último anúncio no jornal. Todos os outros já estavam riscados com um X vermelho. Deu-se à pachorra de contá-los. 8. Oito pessoas haviam dispensado seus préstimos sem titubear, invariavelmente pelo mesmo motivo. A pequena Fabiane, decididamente, não era bem quista em tais lugares.

A criança colaborava com ela. Parecia entender seu sofrimento. Reclamava o mínimo possível, deslocando-se de um ponto a outro da cidade no colo trêmulo e palpitante de Sara Célia, à espera de uma improvável providência da fortuna em benefício das duas.

Sara Célia respirou fundo antes de entrar no elevador de serviço do elegante prédio na Lagoa, ninando Fabiane. Seria muita falta de sorte se ela acordasse aos berros logo agora. Fora informada pelo porteiro de que o rapaz que pusera o anúncio era divorciado, vivia sozinho e costumava receber alguns amigos de vez em quando. Pelo visto, conhecê-la fora o bastante para deixar o porteiro todo assanhado, porque ele não tirou de cima dela aquele par de olhos sequiosos e salivantes.

Benzeu-se antes de tocar a campainha. Só ela podia aquilatar o quanto necessitava daquele emprego. Suas últimas economias de anos consecutivos de trabalho duro se esgotaram havia exatamente uma semana. Desde então, estava vivendo de pequenos bicos e do altruísmo alheio. Não queria admitir para depois não se desapontar. Não gostava de alimentar ilusões. Mas estava mesmo com um bom pressentimento. O homem, sozinho, tende a ser mais sentimental do que ao lado de uma mulher. Todo mundo, na verdade, tem um pouco de vergonha de parecer bondoso em demasia. Pega mal. Dá a entender que a pessoa padece alguma espécie de culpa. Seja pelo que for. Nada melhor que praticar qualquer tipo de filantropia para mitigar remorsos ancestrais.

Seu palpite estava certo. Foi muito melhor recebida do que jamais pode supor. O dono da casa era um estrangeiro bonachão, celibatário que, de cara, se encantou com Fabiane. Sara Célia não só conseguiu o que queria, serviço, como uma série de facilidades e obséquios adicionais. Dominique revelou-se, progressivamente, um homem tão generoso e afetivo quanto carente e solitário. Fêz questão que Sara e o bebê se instalassem num amplo quarto na área social do apartamento. Alegou que havia espaço de sobra, o que era óbvio e que o quartinho de fundos era apertado demais para mãe e filha, além de úmido e sombrio. No que, mais uma vez, estava coberto de razão.

Sempre que vinha da rua, Dominique trazia alguma coisa para a menina. Fosse uma roupa, um brinquedo, frutas, leite em pó, inclusive pacotes de fraldas descartáveis.

Nestas horas, Sara Célia tinha medo dos próprios pensamentos. Como seria bom que a pequena Fabiane tivesse um pai de verdade! Percebia-se claramente que a menina já começava a se afeiçoar a Dominique. Ele tinha carinho por ela, era indubitável. Mas quanto tempo o sonho ia durar ? — perguntava-se Sara Célia, conscienciosamente. Não se cansava de agradecer a Deus todas as noites por tudo de bom que estava acontecendo para ela e para sua filhinha, por obra e graça de um desconhecido benévolo e generoso. Seu procedimento era tão franco e espontâneo, que nem por um breve momento, Sara Célia chegou a suspeitar das reais intenções de seu benfeitor. Seria muita pretensão da sua parte julgar-se atraente ou desejável para um homem como Dominique. Sentia vergonha e enrubescia só de lhe passar pela cabeça tamanha insolência. O foco da atenção do francês era Fabiane. Não ela. Gradativamente foi entendendo porque, inexplicavelmente, aquele homem rico, maduro, independente e cosmopolita se derretia todo frente a um sorriso de criança, beirando as lágrimas vez ou outra.

Sara Célia nunca teve coragem de perguntar porque Dominique vivia afastado dos filhos que tinha em seu país de origem. Mas achava muito estranho que alguém de tão bons sentimentos não se incomodasse com uma coisa dessas. Não se sentia no direito de ficar fazendo suposições levianas a respeito da vida particular da única pessoa que lhe estendeu a mão no momento em que mais precisou. Em que podia lhe interessar a procedência do seu dinheiro, suas razões para estar no Brasil, se tinha namorada ou não tinha? Inesperadamente lhe ocorreu que ele poderia ser até bicha. Não que desse na pinta. Ou que ele fosse dado a algum tipo de afetação espalhafatosa em demasia. Digamos que a esdrúxula hipótese correspondesse aproximadamente a uma probabilidade matemática.

Pouco a pouco, quase sem notar, Sara Célia foi se deixando tragar pelo torvelinho da curiosidade incontrolável. Nas ausência dele, deixava-se acometer de súbitos e inebriantes ardores ao adentrar o quarto em que dormia, a pretexto de arrumá-lo. Tudo o que dizia respeito àquele homem despertava ao máximo o seu interesse. Quanto ele ganhava e o que possuía de valor era o que menos lhe importava. Queria saber de amor. Quem ele amava. Quem o amava.

Neste ponto, adotara uma postura que servia para esconder sua imensa vontade de ser única para alguém do mesmo modo que ele era único para ela. Movida por este turbilhão de sentimentos enviesados, Sara Célia tanto procurou que encontrou o que não queria num desvão do closet de Dominique: uma grande pedra retangular de cocaína, envolvida em papel celofane; e um tablete alentado de maconha prensada, ao lado de balanças, de uma caixinha de fósforos lotada de bolinhas de haxixe e de um livro de contas.

Com uma avidez mórbida e pressurosa, folheou o caderno descobrindo cálculos intermináveis e nomes em código de prováveis clientes. Sara Célia é abruptamente arrancada de seu enlevo de perplexidade e estupefação por um hausto do choro estridente do bebê. Sabia que o mais correto em situações como essa, era não se meter. Fazer vista grossa, se fingir de idiota. Preferia não considerar que a filha pudesse estar correndo algum tipo de perigo. Voltar para as ruas era a última coisa que tinha em mente. Talvez, para ele, as drogas fossem apenas uma mercadoria como outra qualquer. O que mais a apavorava era a hipótese de estar à mercê de um drogado completamente fora de si e não a criminalidade intrínseca à transação de substâncias ilegais.

Pensou bastante e acabou chegando à conclusão de que simplesmente juntar as suas tralhas, pegar a sua filha e dar o fora não seria uma atitude condizente com o tanto que aquele homem, com os defeitos que tivesse, havia feito por ela e por Fabiane. Sara Célia sentia-se em débito e acabou vislumbrando um meio de retribuir o bem que Deus lhe enviara por intermédio de Dominique. Entregá-lo à polícia era o melhor que podia fazer para ajudá-lo a emancipar-se daquela condição aviltante em que estava atolado. Assim estaria propiciando-lhe uma oportunidade para regenerar-se, que provavelmente ele jamais teria novamente pelo resto da vida. É claro que se ele fosse preso, não lhe sobraria outra alternativa senão recomeçar a via crucis atrás de serviço, mas este era o sacrifício que teria que cometer em proveito do bom samaritano que, encontrando-a derrubada, emprestou-lhe forças para se reerguer.

                                                                    Alexandre Lydia

 

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