Sublime 

        Você já ouviu tocar um Sublime? É um instrumento de alta tecnologia. Tão alta que se levássemos seu projeto a um lutier do século XIX ele o construiria... mas não acreditaria se lhe contássemos o seu poder musical!
        Fiquei fascinado pelo instrumento quando ele foi criado. Eu tinha apenas doze anos e como todo pré adolescente eu gostava da parafernália eletrônica dos anos 90. Ainda gosto. Mas aquele instrumento estranho (parecia um desajeitado contrabaixo com muitas cordas, friccionadas por um arco e que tinha um som que lembrava em alguns momentos uma harpa) literalmente me enfeitiçou.
        Lembro-me bem da polêmica que ele causou: foi o primeiro instrumento musical que teve seu timbre patenteado. Assim ficava impossível ele ser sampleado e transferido para a memória de um instrumento eletrônico computadorizado.
        A razão que o grupo que o criou deu para isso (já que eles deixaram livre de patentes a própria concepção do instrumento) foi que o Sublime devia ser um instrumento analógico e acústico e não digital.
        Talvez fosse excesso de purismo ou golpe publicitário. Se fosse esta última razão, deu certo.
        Todo mundo queria conhecer o Sublime...
        Como eu disse antes, o instrumento era de alta tecnologia e também muito simples de construir.
        Parece contraditório ou irônico, não?
        Mas é a pura verdade. A tecnologia não está na sua construção, mas na sua concepção.
        Ele foi criado após muitas pesquisas sobre o cérebro feitas por neurologistas, psicólogos, analistas de sistemas e músicos new age, todos sintonizados com o pensamento aquariano.
        O grande segredo do instrumento é que a base de afinação de suas notas é próprio cérebro humano. As pessoas que o ouvem entram rapidamente em harmonia com os sons, ficam num estado alterado de consciência, e tem sonhos muitíssimos agradáveis, criados pelo autor da música e pelo intérprete do instrumento.
        Bom, isso aconteceu há trinta anos. Ana, minha mulher, acha que eu sou saudosista demais para um homem de quarenta e dois anos e que eu deveria estar vivendo minha segunda adolescência e não me lembrando da primeira... Eu costumo perguntar se ela gostaria que eu entrasse na idade do lobo e saísse correndo atrás de menininhas...
        Eu disse tanto isso para ela que provavelmente foi a primeira coisa que se lembrou quando eu lhe apresentei Míriam. Seu olhar de desconfiança e seu ar de "mas que safado!" foi um sinal claro para mim, após doze anos de
convivência, de seu estado de ciúme...
        Realmente entendi o que estava passando pela cabeça de Ana. Míriam é muito bonita e atraente. E eu, embora não tivesse me olhado num espelho, com certeza devia ter aquele brilho no olhar que as pessoas que estão excitadas por qualquer motivo têm.
        Com uma voz fria e um sorriso irônico, Ana perguntou:
        — Carlos, quem é esta menina e por que a trouxe aqui?
        Enquanto esperava minha resposta, Ana manteve-se na sua. Talvez pagando para ver meu embaraço em inventar alguma história para convencê-la "que não, 'magina, etc.."
        Contrariando a sua expectativa, falei pouco:
        —  Esta é Míriam. Tem dezessete anos e um talento muito especial. Mostre-o para minha esposa...
        Timidamente, ela tirou da caixa seu instrumento e começou a tocá-lo. Seus dedos ágeis percorriam as cordas, o som começou a encher o ambiente e a realidade começou a se transformar...
        Lentamente comecei a sair de onde me encontrava... Transportei-me mentalmente para uma praia... O sol estava nascendo, com seu brilho alaranjado... tingindo o mar parcialmente... a forma fluída das ondas fazia com que aqui e ali um ponto ou outro apresentasse um brilho maior... O som do instrumento misturava-se com o som das ondas, como se ambos se completassem... Aqui e ali ouvia uma gaivota... Comecei então a sentir a temperatura do ambiente... o brisa tocar-me o rosto suavemente... comecei a sentir que era parte daquele mundo e que estava em sintonia com ele... Uma voz suave e sussurrante me convidou para olhar de novo para a água... o movimento de ondulação e o brilho do sol continuavam e suavemente foi mudando de uma cor para outra... primeiro do laranja para o amarelo... transformando-se lentamente em verde... em azul... em violeta... o som da música e as cores pareciam fundidos... pequenas variações na tonalidade geravam novas formas e novos matizes, parecendo transcender o espectro visível...
        O passeio pelas cores foi nos trazendo pouco a pouco de volta para a nossa realidade. Quando olhamos em volta, vimos nossa sala mais bela, sem que nada tivesse realmente mudado, somente nossos olhos interiores... A sensação de paz e tranqüilidade permaneceria por muitas horas...
        Nenhum de nós três queria quebrar a harmonia do momento fazendo qualquer comentário. Ficamos mudos por alguns minutos... que pareceram horas...
        Eu, como se temesse quebrar um cristal muito delicado, falei numa voz muito baixa:
        — Ana, o que você viu?
        A resposta veio num tom muito sussurrante:
        — Um campo florido... as flores dançaram ao sabor do vento... é difícil falar...
        Ela ficou alguns segundos relembrando o que ela tinha visto... Ao final de suas reminiscências, ela franziu as sobrancelhas, como se tivesse intrigada com alguma coisa, virou-se para mim e disse:
        —  Mas, por que você pergunta? Você deve ter visto a mesma coisa...
        A minha resposta a deixou mais intrigada:
        —  É porque eu vi uma praia...
        O Sublime, mesmo na mão do tocador mais hábil, pelo menos até aquele momento, provoca o mesmo sonho para a platéia inteira, com pequenas variações, dependendo da experiência da pessoa com a situação proposta. Se
o ouvinte não viveu alguma situação semelhante à proposta, o sonho não é concretizado e ele vê apenas formas coloridas abstratas.
        A mão delicada de Míriam conseguia suplantar esta limitação!
        Ana não se conteve. Elevou bastante o seu volume de voz, quebrando finalmente o nosso estado de graça:
        — Como você consegue isso?
        Míriam olhou-a e perguntou na maior simplicidade:
        — Isso o quê?
        — Eu e meu marido tivemos sonhos diferentes! Isso é impossível!
        — Você e ele tem sonhos iguais todas as noites?
        — Não! Ele tem os dele e eu, os meus!
        — Então é mais natural que, ao ouvirem um concerto de Sublime, tenham sonhos diferentes!
        — É, tem lógica, porém ele ouviu a mesma música que eu!
        — Como você se sentiu logo após a execução da peça?
        — Eu diria que em paz interior.
        E, voltando-se para mim:
        — E você?
        — Do mesmo modo.— respondi.
        — Você dois estiverem no mesmo estado interior, mas levados a ele por experiências diferentes!
        — Míriam, você é um gênio! - exclamou Ana, abraçando a moça.

        * * *

        Ana e eu não temos filhos. Tenho um trabalho monótono e a única parte da idade do lobo que está se manifestando em mim é uma vontade louca de dar um chute na bunda de meu chefe e mudar de vida... Arriscar um pouco mais.
        Míriam veio na hora certa (a hora seria errada se eu estivesse caçando o chapeuzinho vermelho...).
        Um amigo havia me falado dela. Apresentava-se num barzinho com música ao vivo, escondido num canto qualquer da cidade. Este bar era freqüentado por pessoas curtidoras de fossa, que iam lá tentar mudar seu estado. Ele havia brigado com sua esposa e... descobriu Míriam. "Apaixonou-se"...
        Como eu tinha "ouvidos de ouro" (ouvia tudo, não contava para ninguém, não dava palpite e escutava resignado a dor dos outros), contou-me o segredo e fez questão de mostrá-la para mim.
        Uma noite carregou-me para lá. E eu a ouvi... e vi que o caminho para pontapé no traseiro do chefe estava mais próximo...
        A minha oportunidade de trabalhar com o Sublime estava no meu nariz. Sem dúvida, não como executante, já que, seu eu o tocasse, só provocaria pesadelos. Mas poderia bancar o empresário de alguém que sabia e muito!
        O mundo após 30 anos sem mudanças na execução do Sublime, agora tinha alguém para mudá-lo.
        Meu primeiro trabalho foi convencer meu amigo a largar do pé da menina...
        Após uma meia dúzia de uísques de duas horas de papo furado, convenci-o de que ele estava apaixonado pelo estado que ela provocara nele, usando sua arte.
        Meio a contragosto concordou comigo.
        No outro dia fui sozinho. Na primeira oportunidade, dirigi-me até seu camarim. Ela parecia de saco cheio de homens de meia idade que a procuravam com interesses ocultos.
        Provar que eu não era um lobo solitário não foi fácil... Ela realmente só se convenceu que não era papo de cantada barata quando conheceu minha esposa.
        Vencida esta primeira barreira, tínhamos que partir para a verdadeira briga: colocá-la no mercado.
        A segunda barreira era um respeitável senhor de 65 anos: Alexandre Moore.
        Alexandre foi um dos primeiros executores e compositores de Sublime. Ele era um músico New Age na época em que o instrumento foi criado e assimilou-o rapidamente, desenvolvendo uma técnica pessoal muito refinada. Durante muito tempo, ninguém conseguiu superá-lo e depois ninguém tentou mais... ele era sempre o melhor!
        Gastei minhas noites de folga tentando arrumar algum lugar para ela, incluí-la em algum show, procurar algum patrocinador.
        Então apareceu o problema que eu previra: Alexandre! Todos queriam que ela largasse seu estilo e imitasse aquela peste!
        Embora admire a arte de Alexandre Moore, não gosto muito da aura mítica que colocaram em volta dele. Misterioso, oculta detalhes de sua própria vida ao público. Nada se sabe sobre ele ou sua família. E ele adora este ar de mistério, cuidadosamente cultivado pela mídia, com sua supervisão! Ser invisível para seus fãs é o máximo para ele!
        Ingressos cada vez mais caros! O público fazendo economias absurdas para conseguir ir a um show seu ou se contentando com Covers.
        O seu "excesso de competência" paralisou o desenvolvimento de novos talentos. O máximo que se consegue são bons imitadores, que não ousam ir além de "seu mestre"!
        Ficamos nesta maratona de procurar um lugar para ela tocar durante pelo menos um mês. Minha nova atividade e a carreira de Míriam pareciam estar morrendo no nascedouro...
        Um dia, desanimado com os constantes obstáculos, pensei em desistir. O mundo ainda não estava preparado para uma mudança tão drástica em seu cenário musical... ou eu era um incompetente...
        Comentei então o que eu estava sentido com Ana. Ela ficou pensativa alguns minutos e me largou essa:
        — Alexandre vai dar um show no Columbia Plaza no dia vinte. Ela bem que poderia tocar...
        — Você está louca! — respondi. Eu até procurei o seu agente... Ele só não me chutou de seu escritório com uma bota de pregos por que ele não quis sequer se levantar da cadeira para me expulsar...  Ana ficou em silêncio, pensativa. Ela queria me animar, eu sei. Mas naquele preciso momento, eu sentia todas as portas fechadas...
        Mas a sua sugestão, por ser absurda, me fez pensar...
        O show de Alexandre Moore... A pré estréia, marcada para dia vinte, era um evento fechado. Só estariam presentes jornalistas especializados em música, produtores de espetáculos, artistas, representantes de gravadoras. Exatamente o público que interessava para Míriam... E era lá que ela tinha que estar!
        Para isso eu precisava ser mágico! Fazê-la surgir do nada no palco... Falando mais comigo do que com Ana, exclamei:
        — Mas ela tem que estar lá!
        Minha esposa levou um susto:
        — Onde?
        — Lá! Ela tem que estar presente no show nem que tenhamos que colocá-la à força!

        * * *

        Talvez eu estivesse maluco... Mesmo assim, fui buscar Míriam em casa e passamos a noite planejando como introduzi-la no show.
        Míriam ficou assustada no início, mas pouco a pouco foi aceitando a idéia com mais naturalidade:
        — Afinal, agora é tudo ou nada. É minha carreira... O pior que pode acontecer é eu ficar onde estou, ou me render ao Sr. Alexandre e imitá-lo!
        —  Não é só isso — argumentei — mas o futuro da música está em jogo...
        — Carlos! Não seja exagerado... — minha esposa sempre tenta conter meus arroubos de segunda adolescência... é o temor da (minha) idade do lobo...
        Mas eu não estava exagerando não!
        Discutimos e tomamos a decisão. Iríamos em frente. Tínhamos tudo planejado, com exceção de um detalhe: entrar no show.
        Convites contados, forte vigilância. Tudo estava previsto. O convite era um cartão magnético, pessoal e "intransferível".
        Mesmo vencido o acesso, teríamos que ultrapassar uma segunda barreira, onde deveríamos trocar nosso cartão por um crachá definitivo e pelo material de divulgação. Isso seria feito por gentis senhoritas, de vistosa beleza, mas de um olho clínico super treinado para localizar penetras.
        Expliquei a situação para as duas. Míriam pensou alguns segundos e deu um sorriso malicioso que nos deixou curiosos. Ela percebeu e disse, rindo:
        — Eu tive uma idéia louca, que nem sei se me atrevo a contá-la...
        — É lógico que tem que contar!— eu e Ana, ansiosos, a incentivamos.
        — Bom, lá vai: no bar onde trabalho aparece de vez em quando um sujeito, digamos, com uma habilidade bem especial.
        — E que habilidade é essa? — perguntei curioso.
        — Bater carteiras...
        — !
        — Ele é meu amigo e gosta muito da minha música. Eu forneci a ele um álibi uma vez e ele me deve esta...
        Acatamos prontamente a idéia de Míriam. Afinal não tínhamos outra...

         * * *

        Ricardo. Esse era o nome dele. Nós viemos conhecê-lo algumas horas antes do show começar. Sujeito simpático, sorridente, culto. Fiquei curioso para saber por que um sujeito como ele optaria por uma profissão daquelas, mas não perguntei. Não era de "bom tom", nem tínhamos tempo.
        Explicamos exatamente o que queríamos: três cartões magnéticos, dois de mulheres e um de homem para termos acesso ao show. Lá dentro nos viraríamos por nossa conta e risco.
        Acertamos os detalhes e nos vestimos de acordo. Traje a rigor. Isso nunca mudava... Mas acho que fiquei elegante vestindo-me desse jeito... Mas Ana e Míriam levaram vantagem... Estavam deslumbrantes!
        Desmontamos o Sublime e o colocamos numa caixa e o embrulhamos para presente. Foi único meio de o transportarmos sem gerar suspeitas...
        Chegamos ao hotel. Realmente seria necessária toda aquela segurança. O que tinha de fãs e repórteres com dor de cotovelo tentando pegar alguma brecha e penetrar na sala de espetáculos do hotel (era uma grande sala! talvez para 500 ou mais pessoas)...
        Ricardo pediu para esperarmos numa distância segura do lugar e se  dirigiu a entrada do hotel. Cerca de quinze minutos depois, voltou com três  cartões.
        — Entrem rápida e discretamente — ele recomendou.— O pessoal que foi roubado vai chiar, e é bom que vocês estejam lá dentro quando isso ocorrer. Furem a fila...
        Aproximamo-nos da entrada do hotel. Uma pequena fila, de umas cinqüenta pessoas estava formada, aguardando o início do espetáculo. Dali a pouco mais de cinco minutos, as catracas eletrônicas seriam liberadas. Achei cômica aquela fila de pessoas de traje a rigor...
        Lembrei-me de um truque que fiz uma vez numa fila muito maior, na entrada de um show de rock. Comentei-o com Ana e Míriam e fomos tentar...
        As pessoas que vêm em grupo a algum evento sempre conversam numa fila. O que fizemos foi ficar conversando entre a gente, próximos aos primeiros lugares da fila. Porém, estávamos de ouvido nas conversas de um grupo de jornalistas especializados que discutiam animadamente sobre música. Ajustei a nossa conversa de forma a parecer que fosse uma extensão do grupo. Pouco a pouco, fomos nos integrando... Quando a fila começou a andar, ninguém estranhou que nos misturássemos.
        Transpusemos o primeiro obstáculo. O interessante é que logo após termos passado a catraca, um dos jornalistas que conversavam com a gente perguntou-me:
        — Não me lembro da onde eu o conheço...
        — Ora! Da fila! — respondi, me afastando rapidamente, enquanto ele pensava...
        O segundo obstáculo estava agora à nossa frente: a recepcionista.
        Fui olhar o nome no convite. Era de um japonês! Mesmo que eu a enganasse na apresentação dos documentos, era evidente que eu não tinha olhos puxados!
        O que eu devia fazer era engambelá-la o suficiente e pegar o crachá de outra pessoa. Precisava de um nome e da ousadia de mostrar um cartão com um nome e dizer que é outro.
        Tentei puxar assunto com ela. Foi atenciosa entrou até na minha conversa, mas notei algo: enquanto conversávamos, percebi sua mão indo para baixo do balcão. Suspeitei de um alarme. Logo em seguida, percebi uma movimentação dos seguranças!
        Não pensei duas vezes, peguei as duas pelo braço e corri o mais que pude! Os seguranças, antes discretos e misturados no meio do público, saíram correndo em nosso encalço.
        Nem olhei para trás. Corri como nunca! A minha sorte é que havia no saguão uma exposição de quadros e os biombos que serviam de suporte para as pinturas formavam um pequeno labirinto! Conseguimos atravessá-lo e chegamos aos elevadores. Esperá-los? Nem pensar! Tínhamos que ir pela escada!
        Subimos um andar pela escada. Tentamos nos manter discretos, apesar da roupa de gala... A sorte é que estávamos num hotel de luxo e que não havia ninguém por ali...
        Observei o lugar. Notei que de uma porta, entravam e saiam empregados do hotel. Quando percebi que o movimento de empregados parou, entrei. Pelo que pude ver, era um vestiário! Uniformes de todas as funções! Nunca havia visto isso num hotel... Não tive dúvidas. Duas camareiras e um carregador de malas!
        As roupas de gala forma acondicionadas em cabides e penduradas numa arara com rodinhas que estava ali disponível. Saímos os três. Um serviço de quarto completo! E seria para o camarim do Sr. Alexandre!
        Descemos pelo elevador de serviço. O show já devia estar começando. O Sr. Alexandre não estaria no camarim e portanto não se incomodaria que o usássemos...
        Voltamos a nossas velhas roupas de gala. Apesar da correria, elas não ficaram amarrotadas...
        Deveríamos esperar pelo intervalo e tentar forçar nossa entrada na segunda parte.
        Estávamos tensos e era preciso quebrar esta tensão. Comecei então a fuçar nas coisas do Sr. Alexandre. Nada de interessante... Míriam se entretinha em montar seu Sublime... Achei então o bar... Uísque escocês, champanhe francesa, cerejas do Japão. Uma coleção de cervejas de várias procedências... o homem tinha bom gosto... Não resisti. Preparei um drinque para cada um de nós. Pudemos nos descontrair, então. Um papo agradável ajudou-nos a matar o tempo até estar próximos ao intervalo.
        Apagamos os sinais da nossa presença e nos escondemos por trás dos cenários. Ouvimos os últimos aplausos... Dali a alguns segundos ele deixaria o palco e voltaria dentro de dez minutos. Aguardar aqueles minutos foi realmente uma tortura... O tempo parecia interminável...
        Som de aplausos... O Sr. Alexandre acabara de entrar no palco... era agora ou nunca... Míriam começou a chorar... Ana abraçou-a e transpomos o cenário.
        Os aplausos foram parando... O Sr. Alexandre percebeu algo estranho e virou-se para trás, nos vendo.
        Ana abraçada com Míriam, falou num tom suficientemente alto para ser captada pelo microfone do palco:
        — Míriam, não importa se você está com medo ou não, você vai ter que tocar sim!
        — Sim! - continuei — Não acho justo que seu avô tenha preparado tudo isso para quer você pudesse tocar e você não toca!
        Virei para a platéia e disse:
        — Insistam para que ela toque! É importante para o Sr. Alexandre, no dia de sue aniversário, que sua neta toque!
        Alexandre estava abobalhado, sem reação... O público começou então a gritar:
        — Toca! Toca!
        Míriam então se posicionou no palco. O Alexandre, rendendo-se aos apelos do público, convidou-nos então a sentarmos junto com ele na primeira fileira, que estava reservada para seus convidados.
        Pouco a pouco os sons de seu instrumento, habilmente manipulado, foram nos levando a um estado alterado de consciência.
        Lentamente, muito lentamente, tive a sensação de estar sendo transportado daquele lugar. As imagens ficavam difusas, foram perdendo a nitidez, como se estivessem fluindo. Em seu lugar foi se formando um céu estrelado. O escuro foi sendo pontuado por cada vez mais estrelas... Até que se formou o braço de uma galáxia... Apareceu então uma sensação de movimento e de afastamento ao mesmo tempo. Estava me afastando enquanto a galáxia se movia. Fui tomando conhecimento da sua forma espiralada enquanto ouvia sons harmoniosos... Fui percebendo uma sensação de paz bastante profunda... Senti-me como parte integrante de todo o universo... Fui vendo não uma só... todas as galáxias... O número de galáxias
foi aumentando... aumentando... até que tudo se tornou brilhante. E, por trás do brilho comecei a ver de novo o palco, que, lentamente foi ressurgindo... Vi  o rosto de Míriam... Um sorriso de felicidade e... uma piscada maliciosa...  como se ele quisesse dizer "deu tudo certo, seu safado!"
        Alguns segundos até que a platéia se recuperasse por completo da  experiência e... uma explosão de aplausos! Quase cinco minutos! Todos de  pé! Até o Sr. Alexandre, que agora subia ao palco para cumprimentar  Míriam...
        Ele, no meio da gritaria do público e dos aplausos tentava inutilmente  falar alguma coisa: negar seu parentesco com Míriam!
        Ana e eu subimos ao palco. Ana disse qualquer coisa no ouvido de  Alexandre. A partir daí ele parou de tentar se explicar e abraçou a moça.
        Míriam teve que tocar mais vinte minutos. Alexandre voltou-se então  para a platéia, após um longo período de aplausos, e disse:
        — Hoje não é meu aniversário. Contudo esta moça, com todo este talento  e esta força de vontade para vencer, esta criatividade incomensurável, só  pode ser minha neta!
        Os aplausos o silenciaram por alguns segundos. Quando ele sentiu que  seria ouvido ele continuou:
        — É a qualidade mais importante desta moça. Ela não disse "ele é  insuperável, portanto, posso no máximo igualar-me a ele, imitando-o", mas  disse "eu posso fazer diferente".
        Nova onde de aplausos. Agradecimentos de Míriam e de Alexandre. A  cortina desce. A partir de então, a história da música, principalmente do  Sublime, estava definitivamente mudada...

                                                                     Álvaro A. Domingues
 

 

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