Lembranças de Um Tempo Feito de amor e de Nãos
                                                                               Clarice Lispector em Água Viva.
 

Ela preparou-se para o caos e atirou-se nele. Queria enfrentar a verdade e não ser destruída por ela. Desafiou-a. Luta dura, rápida, mas difícil, tanto quanto necessária. Saiu do caos, mas ainda não pode avaliar as conseqüências do seu gesto. A sensação agora é a de quem saiu de um campo de batalha. Tudo é dor. Uma calma dor. Acabaram-se os tiros, a luta corpo a corpo. Ela, vazia, olha o campo deserto de vida e cheio de destroços ( seriam pedaços, mais pedaços dela?). Com a sensação de quem está há várias noites sem dormir ela começa a lembrar-se de que em algum dia do seu passado, houvera escrito em momento de doída perda: "aproveite tudo que restou de bom porque, o sonho acabou-se". Tenta comparar a emoção daquele dia com a que estava vivendo naquele momento pós-caos, e concluiu que no dia do fim do sonho a sua emoção fora carregada de tristeza mas cheia de poesia. Ela ainda acreditava haver caminhos para o sonho.

Agora, olhando o vazio e os restos do campo de batalha, ela concluía que do dia em que o sonho morreu até aquele momento, o seu relacionamento com ele havia sido um expor-se e esconder-se, um querer tudo e um não querer nada. Um querer a parte real do sonho e um querer a parte do "sonho" no sonho. Um querer esquecer e um permanente lembrar. Enfim, uma complexidade de sentimentos fortes, marcantes. Um amontoado de perguntas e uma compulsão por respostas. De lá para cá o seu relacionamento com o sonho fora tudo isso e mais ( arrisco um palpite: creio que ela não conseguiu separar-se do sonho porque se fixou nas palavras "... aproveite tudo que ficou de bom..." ) Durante todo aquele tempo, entre o sonho e o caos, ela pode constatar, vivendo a sabedoria do grande Guimarães Rosa, que "tudo que é bom faz mal e bem". E por isso viver, teve a certeza de que o sonho fora muito forte, fora necessário, deu-lhe vida num momento difícil, fora céu, fora inferno, fora morte, fora renascer.

Como e por que ela havia chegado até ali? — a sua compulsão por respostas, creio eu — pois ela já concluira que: a) ou o objeto do seu sonho encolhera-se deliberadamente para não a receber, ou b) ela era grande demais na sua beleza e inteireza do seu sentimento, para caber dentro dele. A constatação das afirmativas, qualquer delas, a levaria a mesma coisa; uma impossibilidade. Ela poderia ter parado naquele ponto, pois já tinha certeza que o sujeito do seu sonho só via de belo, grande, forte e verdadeiro aquilo que era seu espelho. Ela poderia ter parado ali. Por que esta teimosia em atirar-se, por que este espírito kamikase? Ela queria respostas e por elas foi ao campo de batalha. Mas o momento era inadequado, impróprio. Ela sabia mas, armou-se e foi para combate.

De um lado e de outro voavam palavras de efeito devastador, mortífero. Ela contorcia-se de dor e desespero, mas, não recuava. A batalha era por respostas e ela as estava tendo. Ela atacava mas, no contra-ataque o poder de fogo do adversário (adversário?...Puxa vida...) Era cada vez, mas forte e ela foi derrotada. Agora só destroços e campo vazio de vida. Quando o sonho morreu ela chorou, mas agora ela não conseguia chorar porque quem havia morrido fora uma parte dela que vivia no sonho. Ela não está chorando e sabe que não o faz porque mortos não choram. A sua situação é duramente real, não admite fantasia.

Conseguiu levantar-se. Sabe que pedaços dela ficaram nos caminhos percorridos pelo sonho e naquele campo de batalha. Um dia ela precisou de um sonho e o fabricou. O seu permanente lembrar do tudo que de bom ficou do sonho a fez continuar a viver da sua possibilidade de realização até o momento do pós-caos quando compreendera, afinal, que tudo fora um sonho e se havia alguma infinita possibilidade, ela se perdera no instante que já foi.

                                                                           Stela Fonseca

 

 

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