O ARTISTA DE QUATRO MÃOS

           Não queria mais o signo (palavra) como código materializador de seu pensamento. E sem ele, articular o que? Exteriorizar o que? De que maneira?
           Não curte, mímica, não sabe pintar, nada esculpe, é um desafeto em potencial da música.
          Eis o dilema em que se encontrava Marcelo Escatolini. Todos os caminhos o conduziam ao nada. Nada. Nada.
          Urgia encontrar uma solução. Uma fórmula nova que lhe permitisse veicular suas idéias com mais profundidade.
          A busca incessante: dicotomias; tricotomias. Interrogava-se sobre a noite e os trabalhadores no campo e na cidade. Interrogava-se sobre a poesia: mínimo riacho que jamais logrou atingir o mar.
          Afinal, perseguir o que?
          Restou inane.

          E dizer que tinha começado tão bem. Domínio quase perfeito da linguagem — do signo verbal —.
          Primeiro as cartas de amor, escritas já na infância. Até atendia pedidos da garotada bronca, pagos com frutas da estação: bastava o nome da musa e o escriba elaborava a missiva sedutora, de encomenda Em seguida na adolescência — quase galo — a crista ouriçada, escrevia crônicas no jornalzinho estudantil, Logo, passou ao conto. O tablóide da província editou-lhe o primeiro. Algum ranço ainda das influências antigas "— mas tudo bem —, havia certa originalidade telúrica.
          O romance custou um pouco a aparecer no caminho de Marcelo Escatolini, mas chegou. Escrito às pressas dando fluxo total à consciência. UM pouco de brasilidade; outro tanto de poesia no fraseado. Aqui e ali uns rodeios com a sintaxe, umas gineteadas com o verbo.
          De vez em quando um leitor a lembrá-lo alguma passagem da obra. Os olhos enchiam-se de um líquido espesso — não eram lágrimas não. Eram os fluídos da genialidade latente, transe, sublimação, assim encarava Marcelo Escatolini aquela emoção arrebatadora.
          Ato-contínuo, vieram em sua vida as leituras de filosofia Mie de todos as artes e todas as ciências, a velha e sábia filosofia. Um pouco da ocidental, velhinha Do oriente, o budismo em gotas. Formou a base de sua intelectualidade eclética caindo dos degraus, mergulhando no fundo do poço interior, onde dizia "nascem todas as estrelas ".
          Daí sim, é que deu pra passar para a poesia, após todas as peripécias com os mais diversos gêneros literários. Poesia. Esta Marcelo Escatolini considerava o último discurso do homem. Princípio e fim da linguagem escrita. poesia, aqui no âmbito da construção verbal, criação humana. Em seu livro Signo de Minha Prática, esgotou as possibilidades de variações verbais; fez uma brilhante incursão no terreno metafísico; traçou a sua própria utopia — que jura algum dia estará em todos os computhadores do orbe.
          Ia esquecendo: Marcelo Escatolini também fez as suas no teatro  — uma peça adulto outra infantil —. Nenhum grupo se habilitou a montá-las. Se fosse para serem montadas por "enfants terribles ", "não nunca Jamais". Marcelo Escatolini queria ver suas obras primas da dramaturgia nacional encenadas por profissionais de renome. Só a poeira dos arquivos é quem sabe de seu talento e as traças cegas.
          Necessária foi a síntese anterior — pois Marcelo Escatolini devia aparecer como é ao leitor: professor de história — aposentado e solteirão — chegou ao ápice de seu entendimento O ser, o criador, o homo faber — o discurso lingüístico extrapolado — tudo são elementos agora para sua investida fatal. Derradeira. Decidiu agora, sim decidiu — "vou ser pintor" a pintura a óleo — "O símbolo pictórico me fascina, enternece, propicia-me uma nova dimensão ao pensar" — é isto. Mas outro dilema, logo emergiu — iceberg gigantesco — diante de Marcelo Escatolini:
          "Nada entendo de tintas, cores, técnicas, Pincéis, telas... "

         Certo dia na sua obsessão de ser pintor, no paço das artes — observou os pintores jovens e velhos; ortodoxos e de vanguarda. Fez a escolha e fixou-se nela. Quis por que quis aquele rapaz alto, loiro que pintava lindas araucárias — que perfeição de detalhes — tinha uma tela com as ditas árvores, uma neblina (Veladuras de mestre) — alguns pontilhados e impastos dignos de Van Gogh e aquelas mãos, que toques, que domínio demoníaco sobre o pincel, o métier em êxtase — era tudo ter aquelas mãos, aquelas... "Aquelas mãos e minhas idéias " — pensou, fixou o entendimento e disse Marcelo Escatolini para si mesmo, de maneira estranha, quase doentia.
          "Hoje é dia de Paço das Artes, hoje eles vem", pensou Marcelo Escatolini — o rapaz das araucárias, vem. No bolso do casaco grosso a lâmina da navalha quieta Hoje ele vem. Veio. Vapt. Sangue jorrando. Jorrando. Vapt. Dois golpes e duas mãos tenras — de ofício e talento — era o que queria.  Era o que sonhava há tanto tempo. A praça sangrou. O  paço sangrou. Sangue. Tinta nova Sangue fresco. Um quadro começou a se exibir na mente do monstro. Ele Marcelo Escatolini o monstro cortou, extirpou, as duas mãos jovens do jovem pintor de araucárias para usá-las com suas idéias geniais nas mais riquíssimas e sublimes criações — Van Gogh geme na tumba, Picasso, adeus fase azul, Rembrandt com seus cavalheiros  — fivelas reluzentes de cobre — jaz para sempre. Aqui nasce o principio e o fim do código pictórico — aqui nasce Marcelo Escatolini — sua árvore genealógica italiana não nega- o renascedor da arte — num mundo louco de robotização — cultura de massas — massas macarrões, aqui o ponto e o contraponto das luzes — a utopia irrealizável — que se faz próximo, real, concreta, Marcelo Escatolini a vanguarda das vanguardas avançadas. A arte quase divina que encontra o filho legítimo do criador e que se faz criador e que se faz grande e que ilumina os caminhos da descoberta cromática, do conceito, da intuição, da nova protonathural filosofia estética.
 
          Marcelo Escatolini criou pernas.
          Nos jornais do dia seguinte, as manchetes: PINTOR TEVE COMPULSORIAMENTE AS DUAS MIOS AMPUTADAS Agora era tarde. MONSTRO AMPUTA MÃOS DE PINTOR. Agora era tarde. Tarde.

          A luz entra pela janela da casa de Van Gogh digo de Marcelo Escatolini — e este extático, — mede a parede — sua tela imaginária —: na mesa ao lado da cama — o talão de pagamento da aposentadoria — professor tem salário mixo: sobrepostas ao talão duas mão sanguinolentas — quase-violetas — mistura de sangue novo — novo — um pig cimento louco — que não conseguiria nunca se pintar sozinho — como faz uma sanguessuga —. Duas mãos mortas, duas mãos inúteis que Marcelo Escatolini utilizava num processo de transe — um processo de pura abstração — mentalizando os movimentos daquelas horríveis mãos mortas como se fossem suas no ato da criação das mais belas obras.
          O mistério permanece. A incógnita. Quem e porque cortaria as mãos do eminente pintor jovem?
          Escatolini ainda nu no quarto — ainda extático — mergulhado numa atmosfera de ateliê: telas tintas azul — cerúleo, terra-de-siena-queimado, verde-esmeralda, amarelo-ocre, terra-de-sombra natural, carmim-alizarim, branco-titânico, vermelho-cádmio, azul-cobalto, as frias e as quentes, as primárias e as complementares, ovos no chão, o vasilhame com a terebentina, o fixador em aerossol, os carvões para o esboço, as paletas, as espátulas, o vidro com o óleo de linhaça... puro clima de ateliê, e as mãos mortas de um lugar para o outro, sujando a tela, caindo ao chão de tábuas do quarto, o envelope de pagamento da aposentadoria tipo oleryt manchado de sangue sangue vermelho cádmio a luz entrando janela adentro o pó as partículas suspensas o crime suspenso os bichos os tons o silêncio exasperante os elementos todos que formavam o nicho de suas idéias a reverberar dentro de si e nada da obra definitiva realmente Marcelo Escatolini não sabia pintar nada nem um traço de carvão afinado com alguma coisa real apenas riscos e ricos que nunca chegariam a ser signos/símbolos pictóricos, um  risco que tão chegou a ser símbolo" como disse Marcelo Escatolini em um poema de sua obra Signo de Minha Prática e que neste momento se fez prático e conseqüente, mas a sina e a herança genética dos tataravós italianos e outros parentes todos pintores — grandes artistas plásticos — não faz sucumbir Marcelo Escatolini e ele persiste nos movimentos com as mãos mortas as quatro mãos as mortas e as que mataram os pincéis estranham a movimentação das carnes conflitantes e o quadro não sai não vem não exsurge na tela para desespero e pânico de Marcelo Escatolini que não vê mais sentido na vida sem a realização do ideal de pintar — pintar maior e melhor — que Marcelo Escatolini não é dado a obras menores — quase chegou a pensar em seu frenesi esotérico que bem poderia antes de tomar as medidas enérgicas e dilacerantes que tomou "cortar as mãos jovens do jovem pintor" em fazer um curso extensivo de semiótica, a teoria geral dos signos sempre lhe acalentou com suas teses alienígenas quem sabe seria mais útil mais humano mais sutil professorar aos novos o conhecimento do domínio da linguagem in thesi mas que nada teve que enveredar para o caminho do mal da amputação das mãos jovens do jovem pintor de araucárias que apesar de tudo reconhece nunca chegaria a ser Van Gogh nunca chegaria a ser Marcelo Escatolini mesmo em delírio — no delírio em que se encontrava — porque o dom do fazer artístico é atribuído a poucos seres na nathureza e ele Marcelo Escatolini era um desses raros privilegiados escolhidos pelo Pather Geral.

           Marcelo Escatolini  lembrou da frase do author do Tratado Lógico Filosófico "O universo de um homem cabe todo dentro de seu discurso". Wittgenstein estava certo, Marcelo Escatolini inferiu certo estava preso todo nervos e veias e mãos as suas vivas e as mortas roubadas preso todo — dentro do seu pequeno discurso não haveria mais razão alguma para vibrar viver era a sombra do solipsismo, que lhe tomava pouco à pouco o ideal da pintura gigantescamente sublime esboroou no vácuo chafurdou no pântano do nada irmã solteira que lhe acompanhou pela vida toda só restava morrer morrer nathuralmente como morrem a maioria dos pintores da moda não como Van Gogh morrer matado por si mesmo nenhum bilhete de suicida nenhuma menção ao tempo ao espaço a liberdade do ser a mãe filosofia mãe do nada e de Marcelo Escatolini não não o galo cantando cantando o galo velho a crista baixa murcha nodosa os sinos loucos da província chamando para rezar redimir expiar lavar as almas e Marcelo Escatolini quieto o olhar fixo nas imagens fílmicas da parede em movimento parede do quarto a sua frente como uma tela virgem que não quer ser pintada estuporada pelos pigmentos moles tépidos como lesmas nos tubos abertos na paleta derramados irregularmente como a vida irregular de Marcelo Escatolini criminosa de dentro para fora e ao inverso não veria mais a sobra das idéias não nascidas a sobra do arroz do feijão a sombra boa do estímulo da utopia criada no seu livro de poesias fica pequenina pequenina como uma moeda verde rolando no precipício amanhã ninguém lembrará mais de Marcelo Escatolini nem os editores nem os galeristas que jamais chegaram a presenciar qualquer livro ou quadro seu ninguém lembrará mais de Marcelo Escatolini de sua loucura no mundo sério dos pigmentos.

          Encontrado morto em sua casa, no quarto, no dia 22 de junho de 1982 — Marcelo Escatolini, brasileiro, solteiro, professor de história aposentado, CPF nº 300.323.429-34, RG-PR: W' 1287654, causa mortis: intoxicação por tintas, em decorrência da ingestão de vários gramas dos pigmentos constantes do laudo de exame cadavérico. O corpo foi encontrado em decúbito dorsal com duas mãos — próprias do cadáver a segurar duas outras mãos mortas de pessoa desconhecida. Na parede, próximo a cabeça do cadáver, um círculo pintado de azul cerúleo com um ponto em preto marfim ao centro que apesar das trezentas mãos de tintas empreendidas pelo novo proprietário da casa, teima em não desaparecer desafiando assim a arte e a ciência.

          Mas não é nada não: tudo é apenas "um risco que não chegou a ser símbolo ".
          Como sentenciou em eu livro de poesias Marcelo Escatolini.
 
 

Este conto de realismo fantástico ou mágico como achares melhor foi o carro chefe do meu primeiro livro e até hoje quando o releio corre-me um líquido espesso dos olhos mas não são lagrimas não! São os fluidos da genialidade antes latente que agora vai  chegando ao fim deitando nos espaços imensos do não fazer do nada mais ousar do descansar da alma aflita da língua solta que se recolhe dos fantasmas interiores que saíram. de férias para sempre isso é um limpar de gavetas um limpar do ser que se limpa por dentro e joga tudo para fora de um abduzido que resolveu abrir o jogo e jogar a bola da comunicação direta mostrando suas origens suas influências pictóricas e literárias seus superegos filosóficos demônicos falsamente messiânicos envolventes e sádicos que o dominam e eu que cheguei a pensar num amplo debate no auditório da Folha de São Pablis com o público mais elitista que se poderia imaginar para a literatura tupiniquim.
                       Fim de caso.
   

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