A LUA E O FEMININO

          O céu encostou os ouvidos nas janelas dos prédios,  aproximou perigosamente a Lua e as estrelas, da vida.
          No apartamento 22 de um prédio antigo, até o homem que se distrai com a intimidade alheia aponta a luneta para o céu. Nas paredes do aposento, sucedem-se fotografias de mulheres nuas, casais na cama, na mesa e na rua. Sobre uma velha escrivaninha de madeira rústica, a fumaça do cigarro embaça o registro da mímica da família. O cigarro é torcido no cinzeiro e esquecido. Estranha sensação, ser observado por estrelas. A mesma que sentiu ao perceber que a mãe tinha um cheiro esquisito, que todas as mulheres exalavam um perfume ambíguo. Custou-lhe caro a curiosidade. Ninguém mandou a mulher que entrou no elevador vestida de tailleur branco encostar o cheiro no nariz dele. Sabia que a dor sentida ao ser mordida no púbis não chegou perto daquela causada pelos olhos cadentes da mãe. Puxado pelas orelhas, arrastou terra pelas ruas e vielas até chegar em casa. Logo esqueceram...
          Hoje, sonhadoras deitam seus seios sobre os parapeitos das janelas sem serem incomodadas. Cheias de criatividade e embebidas na arte da dissimulação, elas sabem que em alguma janela há um homem que desconhece cerveja, pijama e televisão. Imaginam-no de óculos de aros finos e metálicos, barba e bigode à deriva, comportamento tímido e arredio. Desejar não é exclusividade de ninguém, ainda mais quando o outro é um desconhecido, quem sabe, um disfarce, uma luz fugaz em algum quarto de apartamento. Portanto, inútil tentar se vestir para a Lua, nada nesta galáxia será mais primordial e original. Ter esperança não deixa de ser uma pausa da razão... elas sabem muito bem disso.
          No 52, a mulher brinca de pegar estrelas enquanto aguarda o marido voltar do trabalho. Colocou as crianças para dormir mais cedo, vestiu um penhoar transparente e se perfumou. Foi até a janela para ver a envergadura de seu homem ao chegar. Deparou com o jardim ao redor do prédio todo florido. A noite estava propícia aos sonhos. Até dispensou o amante tão logo percebeu ser dele a voz ao telefone. Talvez não chegasse capenga e com marcas de batom vermelho no colarinho da camisa. Por um momento, arrependeu-se de querer o corpo dele esfacelado no asfalto. Tudo por um rapaz vinte anos mais jovem que ela. Sem o desprezo, os amantes não existiriam. Ou seriam mais numerosos? Estaria certo Nelson Rodrigues? Hoje, dispensa incertezas, sempre adorou receber rosas e cravos. Uma flor é suficiente para que se entregue totalmente ao outro. E o marido, há anos trazia somente o cheiro das putas. Perdeu a noção do tempo. Não demoraria e o menino se cansaria das estrias dela, esqueceria a mãe, e o que aconteceu com todas as suas amigas... Deixou que a Lua afastasse tristezas e, sem se dar conta de que o marido urinava nas rosas do jardim, fedido de pinga e orgasmos, passeou o olhar pelos filetes da noite.
          O casal de velhos em beijocas na varanda do 83 não pertence ao nosso tempo. Parece invencionice, embuste de algum escritor. Mas são tão verdadeiros quanto a existência deste texto. Moram sozinhos: ele, no 85; ela, no 83. São viúvos, a família nada sabe sobre o romance. Nem perceberam a felicidade dos dois, o desaparecimento dos sinais dos maltratos causados pela exclusão do rosto deles. Dormem juntos há meses. 0 velho, vez ou outra, brinca de alcançar a Lua para ofertá-la à companheira e amante. Esqueceram as picuinhas do dia-a-dia. Há meses brincam com os vizinhos, pulam amarelinha com as crianças e não reclamam da aposentadoria. As pessoas estranham, olham de través os aventureiros que violam costumes e atravessam oceanos. Vão descobrir um dia que somente a velhice sabe da morte da Lua.
          A mulher do 31 conhece o gosto de todos os uísques. Ela morre e ressuscita todos os dias. Conheceu o ritmo da Lua muito cedo. Daí ser uma das poucas pessoas a sorrir gostoso ao saber das novidades dos velhos. Por que não?, é o que mais se ouve de sua boca. No prédio, todos ignoram a opinião de alguém que afoga os desgostos no álcool. Mas qual alcoólatra não o faz?, mágoas são ofertadas em cada esquina da vida. Também o prazer. A escolha é nossa, de ninguém mais. O homem dela desapareceu muito antes de aparecer esse céu. À medida que cresciam, os filhos também se foram. Nunca mais foram vistos. Os vizinhos habituaram-se com as crises dela, com os bombeiros sendo chamados todos os meses para retirá-la da mureta da varanda. Os amigos rarearam e perdeu o emprego. Nesta noite em especial, ela faz uma promessa ouvindo Bach. Ficará na lista das não cumpridas. A endornorfina cerebral domina. Ela alucina desde criança, escreve compulsivamente e morre. É Lua dia após dia, artista, daí ser a única a aproveitar a claridade da noite para prometer, escrever e beber.
          No 13, coincidência ou não, a moça gosta de tarô. Esqueceu as cartas na mesa e tenta descobrir o ascendente da nova companheira. Nasceu escorpião, não é necessário dizer mais nada. Nunca gozou com homens. Adora tudo que é feminino. A Lua é feminina. As nádegas da mulher que dorme na cama têm as cores da Lua. Gosta do cheiro delas. O pó que ajeita é branco. A mãe expulsou-a de casa ao descobrir suas tendências. Era assim que ela chamava: tendências. O pai parecia entender, mas não se esforçou para que ela ficasse. A mãe sempre foi o homem da família. O pó no nariz rebrilha um céu fantasia. Que gosto terão as estrelas? A Lua parte-se ao meio, deixa sair o rosto de uma mulher cheia de serpentes. O que importa é o maldito ascendente, e ele diz que o romance não e promissor. Terminaria tudo tão logo a outra acordasse. Pediria socorro ao gerente do banco, o vizinho do 15, um solteirão cinéfilo, de libra. Ela desagrega, ele concilia. Foram irmãos em outra encarnação, debaixo de um céu medieval. Vieram de lá, os dois, das ruas estreitas, da música barroca na praça, da Lua brincando entre as torres...
          O 4 é muito perfeito para a época, que nada tem de sólido ou sensível. Todas as luzes estão apagadas, ninguém mora no apartamento há anos. Não vendem e não alugam. O dono aparece vez ou outra para arejar e limpá-lo. Falam que os antigos moradores formavam um casal quase perfeito, não fosse o fato de serem chegados a estranhos rituais. Morreram com bastante idade, no mesmo dia. Nada foi retirado pelos filhos.
          Os da cobertura são os últimos, possuem a liberdade das alturas, Sentem-se estrelas longínquas, distante dos observatórios astronômicos. O homem é diretor de uma empresa estatal, comprou o espaço com alguma negociata. A mulher aparece por ali quando o marido, um diplomata, está em viagens de negócios. Estão às voltas com a construção de um castelo em urna cidade próxima. Uma réplica medieval, bem no alto de um morro. Sempre viveram no mundo da fantasia. Enquanto o homem briga com a antiga mulher pelo celular, a amante olha estrelas procurando aquela que irá obstruir as férias do marido. O dois mergulham na Lua refletida na piscina.
          A claridade desnuda a rua. Meretrizes pararam o serviço para ver a noite passar. O gigolô não gostou de ver, de sua Mercedes, o lado romântico delas e reclamou: "Vocês estão pensando que isto aqui é o Cabo Canaveral?" Acordou mendigos que roçaram os olhos com o dorso das mãos. Não acreditavam no que viam. A fome fica mais leve quando a natureza ajuda. Nas pupilas pequenas, luas e estrelas piscando. Nas dobras dos muros, o fenômeno da multiplicação. Mas a vida ensinou-os a serem desconfiados. Eram os únicos, eles e as meretrizes, a perceber uma plenitude e um vazio esquisitos no ar.
          O céu resolveu encostar os ouvidos nas janelas dos prédios, aproximou perigosamente as estrelas de minha janela e morreu, lentamente, igual a todos os dias, sem mudar absolutamente nada... nem mesmo a desesperança do escritor que vê tudo se repetir no 11, no 23, no 55, no...

Do livro: "A cor e a textura de uma folha de papel em branco" CEPE, 1998, PE

 

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