VELHO

          Solene saiu de casa no final da tarde. Tomou um coletivo e caminhou quase dois quilômetros até o boteco onde encontraria uns companheiros de noitada.
          Pediu uma cerveja, sorveu-a em gosto dúbio de fumar com motivo — a cerveja — e beber sem. Por enquanto. No arrastar das horas, essa relação seria invertida, até que pedisse um maço de cigarros e maldissesse o vício, bendizendo a bebida (ademais, inofensiva, segundo a ciência). A ressaca vem do cigarro. E vem mesmo... os médicos... o estômago... o esôfago... mas o estômago...
          Já apareceu o primeiro comparsa, sentou, pediu copo. Estão na terceira.
          Todos chamam o garçom pelo nome. Inventam apelidos, engraçados, amistosos, quando dá. Depois, esse testa-de-ferro de gerente será chamado por expressões que — embora sempre partindo de seu nome de batismo ou de sua conformação fisica (bigode, barril, careca, fofinho, cocada, baixo, magrão, lemão) — visarão expressar justamente o descontentamento por não haver bares gratuitos no mundo. Ou garçons subversivos e sem amor pelo emprego, só pelos clientes.
          Melhor, fregueses, estes, que já são quatro. Um casal recém chegado pediu suco e coca daiet. Os outros insistem para que ele beba, ameaçam falar mal, ela olha sem jeito (pedira para não beber .. ), acaba desculpando, dizendo em público que não tem nada com isso, o garçom é amigo e traz um copo.
          Piadas novas de português, de avião, da formiga e do elefante. Estratagema de garçom esperto.
Solene espera que as horas passem com tranqüilidade, sem os percalços de, por exemplo, pinga. Fuma, tentando calcular um cigarro por cerveja. Mas o papo cresce e ele perde o controle. O papo arrefece e ele maldiz a perda do controle.
          Mulheres de todas as idades e companhias velejam em seus carros coloridos pela suavidade de um trânsito insuportável para quem tem compromissos — especialmente escribas. Os boêmios adoram, comentam, acenam. Gritam.
O garçom amigo traz outra cerveja, fingindo não saber que a última ainda está na metade.
          Conversam. Algum matuto levanta no ar uma pauta notoriamente polêmica. No bulbo da paixão notívaga, masturbam-se os orgulhos que adoram posições, meios-termos, soluções.
          Arrota-se. Solene olha sem querer para o relógio, soma... ainda é cedo. Diz isso aos outros. "Ainda é cedo!"
          E pedem outra, lá do fundo, e cheia.

***

          Arrepio do estômago à nuca. A boca é fenda pegajosa e a garganta inexiste. Fumar outro cigarro... não fumar.. acabou já o maço...
          "Ô véio, cê teria um cigarrinho..." na carona. Conversa. Levanta a possibilidade do perdido-por-um-perdido-por-mil. Alguém concorda, um outro talvez não. Um terceiro ri, sozinho, em devaneios silenciosos que mais cheiram a masoquismo. Aceitam fazer Solene feliz, ele que é a própria resistência brava pelas entranhas despossuídas da noite.
          Param numa pastelaria opaca onde urram todos os tipos humanos, de mulheres com vestidos gritantes, e homens nos mesmos vestidos, a policiais cansados e compreensivos, e policiais cansados e pouquíssimo compreensivos.
          "Não tem um bar aberto nessa cidade!"
          Uma horda de bancários, companheiros, sorridentes, surge da compensação para chacoalhar a monotonia dos desvalidos. O céu é azul bem clarinho, meio róseo, e Solene olha propositalmente para o relógio, concluindo.
          Amanhã será outro dia, não beberá, não fumará, tentará fazer umas piscinas no clube, ou melhor, tentará ter um clube.
Os goles parecem esparramar a cerveja feito caramelo. A mucosa não aceita, o esôfago está entupido e ardendo. Uma ânsia, tudo sobe, ele lacrimeja e engole. Um cigarro.
          Tosse como se fosse parir. Um dos presentes olha-o com certo dó, outro com preocupação, mas ambos acabam reconhecendo a si mesmos e calam.
          A conversa agora não pode ser agradável, talvez nem polêmica, pois demandaria outras garrafas e um novo maço de cigarros para Solene, que já filou o quarto do amigo. Falam de crimes, da cidade, da manhã.
          Metaboemizam. Analisam as facetas desse estilo de vida. Pesam os problemas, divergem um pouco quanto à palavra vício. Percebe-se aí o que quer continuar e o que quer ir dormir.
          Passam faiscantes os motoqueiros do jornal. Angústia. Vontade de amadurecer, se isso fosse solução, tomar jeito, ser incorruptível.
          Solene olha as horas. Quer dormir. Quer ir.
          Solta uma risada velha e rouca, arranhada, lá de dentro, escarra longo com gosto, mas ninguém dá muita bola.
          Como se o relógio corresse, a vida espatifa em suas bochechas rubras.
          Prefere ir para casa. Quase implora. Os outros acham sensato. Há sempre um guia, geralmente o do carro, que decide. Este também é filho. Levantam-se.
          Cambaleiam ao carro, que cambaleia à casa de Solene. Necessidade inapelável de dormir.
          Na calçada, o verdureiro passa em direção à venda, cumprimentando com a cabeça responsável.
          As janelas encortinadas deixam entrever um amarelado de vida, uns vultos vagando ainda meio fofos lá dentro. Solene divisa os pais, a irmã, o irmão. Despede-se dos amigos, um deles lhe deseja boa sorte. Vai precisar.
          Solene abre o portão, bate com suavidade na porta. Não é necessário fingir exaustão para justificar os olhos inchados, aquela prostração meio depreciativa onde o queixo faz papada para baixo, a boca cerrada, torta, faz biquinho, e os braços despencam ao longo do corpo. Ginga um pouco, mas está profundamente exausto.
          Cheiro de café novinho. Ânsia, arrota, engole.
          A mãe abre a porta, estática, acostumada, escolhendo a frase mais apropriada (ao dia, ao clima), das que estão armazenadas em sua maternidade com o nome de Solene depois dos quinze. Fala qualquer coisa.
          Solene sai da penumbra, invadindo a sala a passos calculados, meio corcunda.
          A mãe solta um grito de horror, pulando para trás feito em descarga.
          — Meu deus do céu!
          O pai vem, bufando, apavorado, esperando o pior.
          Olham para o rosto do filho, medem-no de cima a baixo, cercando-o lentamente, como se quisessem catar um bicho arredio.
          — Que foi? — terei feito alguma bobagem?, ele pensa. Olhos crispados o medem.
          — Que te aconteceu, Solene, meu filho? — o pai é  desesperado. A mãe tampa o rosto, chorando, joga-se na poltrona. Mas é obrigada a olhar, a entender, a calcular. Não, não pode ser...
          Vem correndo a irmã, da cozinha. Estanca, abobalhada.
           — Nossa.
          O irmão:
          — Puta que o pariu! Solene...
          Solene corre ao banheiro, já convencido, já convencido de algo estapafúrdio.
          O espelho confirma.
          Sulco a sulco, nos desenhos assimétricos que se espalham no semblante perdido e sóbrio, nos olhos cansados, Solene  transformara-se num velho septuagenário.

***

          A família até que reagiu bem. Provaram um amor inviolável do qual muitos duvidam até momentos como aquele. E Solene era só comoção.
          É claro que, no início, pensaram ser uma doença rara, dessas  que se abatem apenas sobre proles responsáveis e subitamente  desgraçadas. Mas, passado o final de semana, levaram Solene ao médico, um ex-pediatra seu, que ainda resolvia casos menores.
          O doutor olhou-o bem, não reconheceu. Para a mãe, perguntou se era o avô, para o pai indicou um geriatra. Ficaram sem jeito. Saíram imediatamente, sem dizer palavra, o médico ficando para trás entendendo menos ainda.
          O geriatra, conquanto ninguém comentasse, agiu com destreza, fazendo um checap rápido, gentil, sincero. Solene havia apresentado à secretária com o nome verdadeiro, mas quando lhe perguntou a idade, ficou uns segundos sem responder. Pensou, lhe veio à cabeça o número 72, e foi o que disse, sem provocar espanto algum.
          Agora, sabendo que fumava, o médico não gostou. Chamou a mãe e, como se ela fosse filha de Solene, aconselhou que se fizesse possível para dissuadir o velho de fumar. Dessem-lhe balas, chocolates, sucos ou chás, mas evitassem o fumo na casa. E bebida...
          — Convenhamos, né, seu Solene?
          Sacudiram as cabeças humildes. Agradeceram a atenção saíram com uma receitinha azul.
          O tempo seguiu, não revertendo nem piorando a situação. Solene se acostumava às dores nas costas, aos pés inchados de subir as escadas, às cartilagens engrandecidas. Pensava muito, balançando .na cadeira que antes era do pai.
          Deste, as próprias roupas herdara: os chinelos largos de couro, as calças de linho escuro, um roupão antigo de iniciais bordadas na barra. Arranjou um chapéu de feltro, sentiu-se folgado e assentado no pulôver bege e o vestia com camisa de algodão.
          Gostava de ler jornais inteiros, todos os dias, saboreando um cafezinho quente e doce, passado de madrugada. Dava beijos nas testas dos irmãos que saíam para a escola. Ninguém arriscava chamá-lo de "vô", mas a conotação que seu nome recebia na casa ia tomando mais ou menos esse caminho.
          Os pais sentavam ao seu lado, falando baixinho de coisas alheias: doenças, desastres, más índoles, tudo até então secreto para ele, que saboreava cada instante dessa sobriedade.
          Chegavam a lhe perguntar opiniões. Preocupavam-se com seu bem estar. Os tons das vozes eram permanentemente macios, cuidadosos, humildes — salvo quando uma neblina fedorenta saía do banheiro com ele, e descobriam cinza na louça da privada. Então quase gritavam, em desespero infantil e franco, clamando-lhe compreensão para o próprio estado. Não mencionavam velhice, e quando ele esquecia algum nome ou data ou detalhe, não cogitavam senilidade. Como se faz com velhos.
          Mas que, no mínimo por respeito, não fumasse mais!
Solene acabou ganhando status peculiar com todos ao seu redor. 0 pai ralhava com um dos irmãos e voltava para Solene: "pode, uma coisa dessas?"
          E Solene, abanando a mão meio besta, sem tirar os olhos da tevê: "deixa, é criança ainda, um dia toma jeito..."
          E isso bastava para que todos ficassem um pouco mais tranqüilos, mais aconchegados.
Os amigos íntimos ficaram sabendo da nova situação. Venceram a estranheza e o desgosto, se bem que com certa dificuldade. Visitavam-no regularmente, sempre à tarde, levando vídeos alugados, pipocas, diversas guloseimas. Também não comentaram mais sobre o caso, também se acostumaram, feito aprendizes ou afilhados, também prostrando suas comiserações e apreços.
          Aos conhecidos e comparsas boêmios, esses jovens confusos apenas emudeciam quando se perguntava sobre Solene. Até que, certo dia, teve-se a idéia de tirar daquele desconforto uma ironiazinha:
          — Cadê Solene, que não aparece?
          — Ah, ficou velho de repente...
          E os sabedores se entreolhavam, cúmplices.

***

          Certas coisas, enquanto são apenas indícios, ficam congeladas na memória, à espera de significados.
          Solene, sem mais dentes, deu-se bem com a dentadura, o gostinho de hortelã do pó fixador, a sensação de encaixe geladinho pela manhã.
          Era compreendido quando passava quase cinco minutos mastigando, quando discutia com os outros velhinhos da vizinhança, sob a mangueira, no parquinho.
          Campeão de malha (duplas), fora docemente elogiado pela viúva do guarda-linhas. Causara alvoroço ao entrar para o Rotary. E foi assim que fundou, com outros anciãos, o Clube da Terceira Idade de seu bairro — iniciativa inédita por ali.
          Passeava elegante, de sobretudo, bengalinha e o lenço dobrado no bolso do peito. Freqüentava especialmente enterros, cafés e o Jóquei Clube. Aos poucos construía sua roda de convivência, cumprimentava as pessoas, era respeitado. Fez duas palestras literárias no Clube das Moças.
          Mas a família nem por isso deixou de se precaver, moral e materialmente, para o inevitável: em palavras diretas, Solene ia ficando gagá.
          Pluminhas eriçadas na careca repleta de pintas, começou sussurrando conselhos às sombras escondidas nos cantos. Fumava cigarros apagados, ou com o filtro ao contrário. Às vezes cantarolava umas canções infantis, tão recentes quanto seus irmãos, mas com tal ternura, no baixinho da voz, que parecia um folclore há muito perdido. Causava certa angústia ao interromper qualquer conversação com seus devaneios, puxando as lembranças dos botecos, desses ou daqueles "antigos" companheiros — como se eles não estivessem ainda procurando emprego ou comprando alianças de noivado.
Um dia Solene desceu as escadas aos berros, chamando todos.
          Rodearam-no, preocupados, para ouvir que queria escrever ali mesmo seu testamento. Pressentimento horrível, quando tentava dormir.
          Entreolharam-se; o pai concordou gravemente e os outros acabaram aceitando. Chamaram um senhor conhecido, tabelião já aposentado, que aceitou servir à farsa.
          Grave e compenetrado, Solene preencheu o documento, deixando o toca fitas para a irmã, as roupas para o orfanato, o violão para a mãe e a magra poupança para o pai investir no estudo dos irmãos. Todos ficaram sinceramente comovidos, abraçaram-no, beijaram, mas no íntimo preparados para o pior.
          Não demoraria muito.
          Solene passou alguns dias enfermo, uma crise de asma virou pneumonia e desiludiu o geriatra. Familiares e amigos revezaram- se no plantão, ninguém falava, era só espera.
          Numa tarde cinzenta de dezembro, Solene expirou com oitenta e seis anos, vinte e três após ter nascido. Ao redor do cadáver, muitas pessoas de idades variadas lamentavam e argüíam pela memória de um grande homem. 

Giulherme Scalzilli
Do livro: "A colina da Providência", Ed. do autor, 1996, SP
 

 

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