O ESPELHO

          Sentada na cama, tinha nas mãos o velho espelho que a acompanhava desde os tempos de noivado. Procurava vislumbrar-se através dele, dizendo para si mesma: afinal, não estou tão mal assim. São tantos anos e eu ainda estou aqui. Quem diria, hein? Com uma técnica surpreendente, que somente ela conhecia, tateava os dedos no vidro do espelho, percorrendo com firmeza e a segurança de quem sabe onde se encontram os traços de seu rosto refletidos ali. A ponta do dedo indicador percorria, agora, as sobrancelhas, por fazer, descendo aos olhos, circulando-os com carinho e saudade do brilho que estes emitiam.
          Deslizando rapidamente o contorno do nariz, sorriu faceira, diante do pensamento que a acometeu: Um nariz torto, pode ser decorrência de um grave desvio de septo. Engraçado! Não percebera isso há mais tempo. Os dedos longos, finos pareciam mãos de artista, de médico. Quem sabe? Ao contornar os lábios sentiu um leve tremor a percorrer-lhe o corpo. Ah! Quantos homens já tocaram aqueles lábios! Bem que podia contar nos dedos, afinal, não foram tantos assim. O pensamento que lhe ocorreu não passava de uma fantasia do passado que não tivera oportunidade de realizar. Apesar dos anos, as rugas não haviam conseguido se apossar de todo o seu rosto, o que  de certa forma a surpreendia. Uma ruga aqui, outra ali, mais outra adiante.
          A mão direita deslizava agora sobre os cabelos, entrelaçando-os com os dedos, embaraçando-os com carinho. Estes desciam lisos, ainda sedosos, entrecortados por fios brancos e escuros, ao longo dos ombros. Não era bela, assim se julgava hoje em dia. Mas já fora. Diziam que havia uma expressão singular em seu rosto suave, seu olhar era sereno. Quanto tempo já se passara desde que conseguira vislumbrar essa mesma suavidade de seu rosto, essa tal serenidade do olhar?
          Tornou com a palma da mão no espelho, quase que cobrindo assim seu rosto refletido. Ficou por alguns instantes ali, pensativa, o rosto coberto. Como um filme, toda a sua vida perpassou diante do espelho. Então? Quem fora ela? O que fizera de útil? Fora feliz? Realizara sonhos, desejos? Tivera alguma esperança?
           Ontem, ela fora Eunice. Hoje, chamavam-na Dona Nicinha.
           Eunice conseguira realizar quase tudo que almejara na vida. Quase tudo! Pois sempre fica faltando alguma coisa, dizia ela. Os pais, em sua esmerada educação, atingiram a meta por eles desejada. Casada, tomara consciência de que tivera poucos namorados, praticamente às escondidas, como as demais companheiras da Escola Normal. Casou-se com um homem bem mais velho, dedicado professor da Fundação Educacional. Homem  sério, digno, trabalhador, honestíssimo, marido exemplar, pai amoroso, porém severo. Tudo tem limite, hora e local para acontecer, dizia ele. Ela, formando-se professora, cheia de planos para o futuro, recém-casada, planejara trabalhar também, alçar vôo, conhecer pessoas, outras culturas. No entanto, o marido alicerçado em bases rígidas, pensava como os pais de Eunice:. Casou? Agora vá cuidar de seu marido, da comida e das roupas dele, do jaleco branco, manchado de caneta e já amarelado pelo pó de giz acumulado ali, com o passar dos anos. Casou? Agora, que venham os filhos. Um só não basta. Pode crescer mimado, birrento, querendo ser o centro das atenções. Dois, nem pensar. Se forem gêmeos, então, vai ser um problema. Três, então... Ótimo! Um deles poderá tornar-se a ducha de água fria nos outros dois... Três, então... Assim seja! Assim foi feito. Casou? Agora que vieram os filhos, é imprescindível todos os cuidados, atenções, preocupações, carinhos, dedicação exclusiva a eles, pois somente assim serão homens dignos de respeito, educados, que preservem o sobrenome que o pai conquistara ao longo dos anos. Cabe à mãe saber dividir, compartilhar, ensinar as boas maneiras, apartar, conciliar, levar à Igreja aos domingos, estar no meio deles todos... Deles? Sim, deles... homens. Deus a presenteara, se assim podia dizer, com três homens, quatro com o marido. Nenhuma menininha, para vesti-la de rosa na infância, poder transmitir a ela os pensamentos febris na adolescência, ensinar-lhe a ser uma mulher livre, segura de si, de seus sonhos e planos.
          Eram quatro contra uma. O jantar em família era um ato sagrado. Todos à mesa. Comendo em silêncio. Os filhos não ousavam sequer levantar os olhos uns para os outros. O casal ainda trocava uma ou outra palavra durante o jantar, saboreando as refeições apetitosas que a mãe dispunha de tempo  para fazer. Eram pratos artisticamente preparados. Todos se  orgulhavam dela.
          Os filhos cresceram, desrespeitaram as regras, fugiram às normas. Mesmo reconhecendo terem recebido uma valiosa educação que, com certeza, lhes seria útil ao formarem suas famílias, decidiram que era o momento de romper alguns laços. Cada um cuidaria de si, iriam trabalhar, aumentar o patrimônio da família. Poderiam escolher suas esposas, que certamente, trabalhariam fora, deixando os filhos aos cuidados de empregadas e babás. Seriam professoras, bancárias, advogadas... quem sabe, engenheiras, médicas.
          Eunice ficou ao lado do companheiro ainda por muitos anos, cuidando de sua alimentação, de suas roupas, controlando o horário dos medicamentos. Ele fora tão bom para ela! Sempre presente, sincero, leal. Ele fora o marido que muitas de suas amigas da Escola Normal tanto sonharam e que muitas não puderam ter. Mas ela e, somente ela, sabia que faltava algo, um vazio no peito que sempre a incomodara. Procurava não pensar nisso. Não valia mais a pena. Não daria mais tempo. Afinal, os filhos já estavam criados, sua missão para com eles já estava cumprida. E o companheiro? Este sim, precisava mais ainda de seus cuidados. Apresentava-se adoentado, e ela, sempre dedicada, se esmerava nos cuidados. Ainda assim, pensava Eunice, fui feliz, fui muito feliz. Meu marido me amou. À maneira dele, mas amou. Jamais deixou-lhe faltar nada, nem mesmo aos meninos. O que poderia querer mais naquela altura da vida?
          Numa dessas frias manhãs de maio, o companheiro se foi. Deixou esposa, filhos, noras, netos, parentes e amigos lamentando sua partida. Deixou bens a inventariar. Não eram muitos, mas os filhos saberiam como aumentá-los e por certo não deixariam a mãe desprotegida.
          Eunice, agora Dona Nicinha, se viu sozinha, a perambular pela casa. De um canto a outro. Percorria várias vezes ao dia todos os cômodos, como a procurar algum objeto perdido. Passava as mãos sobre os móveis, abria a geladeira, ia na despensa, tão bem abastecida. Em velhas caixas de sapatos, guardava as fotos, inúmeras delas, retratos de momentos agora esquecidos no tempo. Com saudades, perdia horas e horas envolvida em colocá-las numa ordem, numa seqüência cronológica.
          Assim, aos poucos, mesmo tendo todos os cuidados e atenção que os filhos podiam dispensar lhe, mesmo tendo a prestimosa atenção das noras, prontas a atendê-la, Dona Nicinha, tão boa vizinha, tão caridosa, tão devota do Menino Jesus, foi definhando. Pouco a pouco. Os filhos, preocupados, correram com ela em busca de médicos e especialistas. A mãe sofria de diabetes e, apesar dos cuidados, o glaucoma estava sendo um inimigo implacável. Como ficaria ela? Qual dos filhos teria maior disponibilidade para cuidar dela? Enfermeira particular? Fora de cogitação! Acordaram entre si que uma vez por mês um deles a levaria para sua casa. Dona Nicinha  em tudo procurava cooperar, sem nenhuma reclamação, sem choramingos ou gemedeiras. Os filhos estavam ali, a seu lado. As lembranças ficaram na outra casa, nas caixas de sapato.
          Os pais de Eunice não a prepararam para essa situação. Eles ensinaram tantas coisas para a única filha. Eles, ao modo deles, procuraram mostrar o belo e o feio, o certo e o errado, o pecado. Ela tornara-se tão prendada! Porém, esqueceram-se de ensiná-la a conviver com a cegueira, com a dor, com a saudade, com a solidão. Como olhar as plantas do jardim e regá-las ao fim do dia? Como fitar a imagem do Menino Jesus no colo de Sua mãe, sem emocionar-se diante de tão bela visão? Os rostos dos filhos, dos netos, com certeza, perder-se-iam nas lembranças, suas fisionomias esconder-se-iam no recôndito mais escuro de sua alma... Como não ver o despertar do sol, a despedida da noite... Dona Nicinha gostava de ficar na janela observando os transeuntes nas avenidas, nos ônibus cheios. Observava seus traços, o olhar de cada um, perguntando-se no que estariam pensando, que preocupação trariam consigo.
          Uma lágrima caiu quente sobre as costas das mãos de Dona Nicinha, trazendo-a de volta à realidade. Uma lágrima rolou pelo rosto pálido, sem vida, porém sereno de Eunice. Um arrepio de frio percorreu seu corpo frágil; um suspiro triste fez-se ouvir pelo quarto onde ela se encontrava.
Eunice ainda teve tempo para pensar no companheiro que ela acreditava vir buscá-la, pois vinha trazido pelas mãos do Menino Jesus, este já crescido, fora do colo de sua mãe; nos filhos que um dia também partiriam, ainda que dissessem ser cedo para se preocupar com essas coisas; ela então riu de si mesma, ao pensar que Deus poderia ter-lhe  tirado as pernas, ela prometia que ficaria  bem quietinha, bem comportada em sua velha cadeira de balanço, observando a rua e seus transeuntes. Que importava andar, o que ela mais sentia falta era da sua visão, de olhar nos olhos e nos rostos das pessoas. Ela sentia falta de recordar-se da fisionomia do companheiro, de seus filhos... da imagem do Menino Jesus.
          Ao entrar no quarto, como vinha fazendo todas as manhãs, a fim de coroar-lhe a fronte com um beijo matinal, a nora encontrou-a caída, inerte sobre a cama. O espelho, não largou.
          Eunice se fora. Seus olhos bem abertos, fixos no nada, brilhavam, resplandecendo no rosto suave e sereno toda a beleza de outrora... Mais tarde, todos comentavam com saudades. 

Dayse Benígna Bernardo Araujo Gomes

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