QUINZE MINUTOS
“No futuro todos terão quinze
minutos de fama”
Andy Warhol
“Como já não é possível
achar argumento na própria existência,
só nos resta fazer ato de aparência
sem preocupação nem mesmo de ser olhado. Não se trata
de ‘existo, estou aqui’, mas de: ‘sou visível, sou imagem’.
A violência mais banal tornou-se o maior espetáculo da terra”.
Jean Baudrillard – A Transparência
do Mal
O cara de barba
ruiva é o Chefe. Tem também o China (que é Paraibano
de Afogados da Ingázeira), o Major, o Verme e eu. Formamos o Bando.
Cada um de nós não tem mais nada a perder ou a ganhar. Estamos
no jogo, na área, se nos derrubar é pênalti.
O China diz
que “tá-calô-prá-porra!” e o Verme sorri exibindo os
dentes cheios de restos de comida. O cara de barba ruiva tem uma pistola
Brownings semi-automática com coronha de madrepérola que
todo mundo cresce o olho e o Major fica só fazendo cálculos
estatísticos numa calculadora japonesa, na dele.
A gente termina
de comer o jabá apimentado que o China fez com algumas verduras
já não muito frescas, os ossos da sopa que comemos ontem
cobertos com um molho branco que endureceu assim que entrou em contato
com o ar e, assim, de bucho cheio, a gente se separa.
Ninguém
vai com ninguém. Cada um segue um rumo diferente. Às duas
e sete, no entanto, chegamos todos juntos na Estação Terminal
do Metrô. O cara de barba ruiva diz que o China vai ficar no
volante da Blazer que eles roubaram no estacionamento do Hipermercado Consumo
Total 24 Horas. O Verme vai com ele e o Major comigo.
Na portaria
do prédio a gente suborna o porteiro com três papelotes de
5 g. do pó batizado com maisena e vidro moído e sobe pelo
elevador de serviço já com as meias na cabeça.
O bacana está com a família. Estão jantando. Comem
comida de rico com uma pasta verde por cima. A coisa é espessa,
com um cheiro forte de quiabo. A gente detona.
No caminho o
China quer saber como foi a parada e o Verme grita “Detonamos!” com os
dentes ensebados apontados bem na minha direção.
No cativeiro
tudo é rápido. O China esconde a Blazer no matagal dos fundos,
o Major injeta 70 miligramas de Luminal na radial do sujeito e o cara de
barba ruiva avisa que vamos dar um tempo de dois dias: “Depois a gente
faz contato”, ele fala encerrando o assunto.
O China liga
a tv e o rosto do Cid Moreira aparece ocupando todas as vinte e uma polegadas
da tela. O Verme comenta que o Cid Moreira é foda. O China concorda
e quer aumentar o volume. “Tá baixo prá porra!”, ele diz
estendendo o braço — que é liso como uma jibóia
— na direção do televisor. Por um segundo ele gira
o botão do volume até o grau máximo. O “boa-noite”
da voz do Cid Moreira explode como uma vidraça, enche o ambiente
com um chiado atonal poderoso e desaparece deixando um silêncio asfixiante
pulsando dentro dos tímpanos. “Êta porra!”, fala o China dando
um salto para trás, movendo-se como um orangotango de borracha ensaiando
uns passos de break. Um cachorro começa a latir no fim da rua, depois
começa a uivar e a ganir como se alguém houvesse acertado
um bico de canhota em suas costelas.
O Cid Moreira
diz: “Hoje, por volta das nove horas, o empresário do setor de Embalagens
a Vácuo, o senhor Roberto Cardoso Magalhães Henrique Marinho,
foi levado por três indivíduos ainda não identificados.
A polícia diz que não há pistas dos seqüestradores,
mas que pela limpeza do trabalho deve tratar-se de uma quadrilha muito
bem organizada, de profissionais que sabem o que estão fazendo”,
e a gente ouvindo isso se enche de orgulho. As palavras “limpeza”, “organizada”
e “profissionais” soam como música, me faz inflar o peito altivo.
“O reconhecimento de um serviço bem feito é sempre um prazer”,
os panfletos das Teorias Motivacionais me ensinaram isso.
O cara de barba
ruiva, além da semi-automática, possui também um par
de botas pretas que ninguém acredita. São alemães.
Bico fino. Com fivelas douradas. Nas pontas tem umas chapinhas de prata
que brilham. O Verme comenta que gostaria de ver o Cid Moreira calçado
com as botas do cara de barba ruiva e o China diz que já viu o Cid
Moreira dentro de uma banheira cheia de espuma, na capa de uma revista.
Entro na conversa. Digo que o máximo seria o Cid Moreira dentro
da banheira da capa da revista calçado com as botas alemãs
do Chefe. “Ele poderia ficar com as pernas levantadas, assim como se estivesse
pedalando!”, digo sentando na ponta da cadeira e balançando as pernas
para ilustrar o que estou dizendo.
O China e o
Verme acham minha idéia sensacional. Mas o Major diz que estou sendo
ridículo. O Major é frio como uma geladeira do IML e nunca
ri, apesar da coroa de ouro que ele tem no dente incisivo direito.
Sei que ele gosta de garotinhos com menos de onze anos, faz filmes pornôs
sado-masoquistas com eles. O Major sabe exatamente o como, o quanto e o
onde quando se trata de humilhar alguém.
Fico por algum
tempo com as pernas inertes no ar e com o sorriso apagado na cara idiotizada.
O Chefe me manda
ver o bacana e levanto da cadeira sentindo as pernas moles, quentes, como
se elas fossem de tubos de PVC e estivessem derretendo por dentro, com
essa certeza íntima, absoluta, que não conseguirei andar
sem rebolar. Numa madrugada, um sujeito de costeletas à Elvis Presley
gritou para quem quisesse ouvir que “o medo faz qualquer um rebolar”. Eu
ouvi isso e não consegui esquecer ainda.
Levanto da cadeira
assobiando La Cucaracha, tentando não me sentir ridículo.
É claro que não consigo.
“O bacana tá
lá caído com a boca aberta”, digo com a voz insegura, fazendo
curvas fechadas nas vogais abertas, num trinado desafinado em bemol.
Não volto
a sentar na cadeira. Fico de pé, com as costas coladas na parede
gelada, assobiando La Cucaracha, sentindo uma onda amarga de vergonha ir
e vir dentro de todo o corpo. Com as pontas dos dedos aliso o cabo de minha
faca Randall Modelo 14 com quatro reentrâncias digitiformes no cabo.
Fico imaginando um grande ringue no centro de um poli-esportivo todo iluminado.
Muita gente nas arquibancadas. Câmeras de tv e loiras de óculos
escuros com armação de chifre e pele de gemada bronzeada
artificialmente a laser por todos os lados, me mandando beijinhos sabor
cereja. De pé no centro do ringue, como dois Apolos de bronze, somente
eu e o Major. O juiz diz: “Que vença o melhor!” e eu, como num filme
de Jean Claude Van Dame, me afasto uns passos, tomo impulso e dou um salto
de dois metros de altura. No alto faço um giro de trezentos e sessenta
graus e aterrisso enfiando até o cabo a lâmina de minha
Randall Modelo 14 no pescoço do Major. Ele cai no piso impermeabilizado
do ringue espirrando sangue como um chafariz na festa do vinho, tendo espasmos
convulsivos por todo o corpo, os olhos vidrados no meu rosto que brilha
no mesmo tom laminado das luzes dos holofotes. Antes de empacotar de vez
para o inferno com todas as despesas pagas o Major diz: “Você foi
o melhor, a vitória foi merecida!”, em seguida ele vomita mais uma
golfada de sangue pisado e já era. O público aplaude de pé.
Os flashes espocam aos milhares. As câmeras me focalizam em close
americano. Então me ajoelho ao lado do cadáver, faço
uma incisão profunda no tórax com a ponta de minha Randall
e, com os dentes, arranco o coração do Major e ergo o músculo
ensangüentado para o público. A multidão vai ao delírio
com minha performance, me aplaudem de pé, gritam meu nome em uníssono.
Depois, em lágrimas, todos cantam o Hino Nacional.
O cara de barba
ruiva avisa que vai dar uma cagada. Manda todo mundo ficar ligado e vai.
Com o pote plástico
de iogurte natural e o tubo da caneta esferográfica o Verme prepara
o cachimbo. A gente fuma porque vai ser uma longa noite. O China torna
a estender seu braço liso de jibóia na direção
da tv e muda o canal. O cachimbo vai passando na carioca enquanto a gente
fuma e fica vendo o cara do “Isso é simplesmente um luxo!” fazer
mais uma de suas visitas espetaculares com chegada de helicóptero
e lancha até a fabulosa mansão com colunas jônicas,
jardim de inverno com azulejos de cor rosa e teto japonês de vidro
amarelo. Há também as imagens da piscina térmica,
dos interiores decorados com geometrismo à Mondrian, do escritório
tunisiano, dos quartos de dormir com janelas de vidro que vão do
chão ao teto, das salas com tapetes vermelhos vivo e de um foier
de paredes nuas adornado só com uma plataforma coberta por dezenas
de vasos de tulipas que o campeão mandou construir na sua ilha paradisíaca
particular, longe do que ele chamou de “Deprimente e caótica miséria
urbana”. Ninguém diz nada. Dá um branco frio. Deprime
como um ódio gasoso corroendo as paredes do estômago. Fico
com vontade de chorar toda vez que ouço que toda aquela merda é
“simplesmente um luxo!”.
O Verme diz
que está tendo ânsias de vômito. Digo que foi o jabá
apimentado do China que atacou o fígado e o China e o Major já
apagaram. Dormem com as mãos dentro da calça, segurando o
saco, a cabeça tombada sobre o peito. O China mantém a boca
aberta e ronca. O Major tem os cenhos cerrados, como se tivesse resolvendo
uma equação muito difícil do programa de domingo “Tudo
Por Um Milhão”.
O Chefe continua
cagando.
Um resto de vômito ficou em forma de massa seca nos cantos da
boca do Verme. Ele não conseguiu resistir e acabou mesmo vomitando.
Procuro não olhar. Ele fica um tempo com os olhos grudados no tubo
da tv, admirando as cores plásticas dos comerciais – que são
tão bonitas que dá vontade de comê-las – tendo espasmos
abdominais em intervalos de 7 segundos cravados, quase vomita de novo quando
tenta dar mais uma tragada no cachimbo. Levanta-se zonzo e segue cambaleando
para o quarto onde está o bacana caído com a boca aberta,
fica por lá. Durmo sem desligar a tv.
Estou sonhando
com obesos que fogem de laboratórios hormonais carregando sequóias
holográficas, vejo isso pelas milhares de telas de cristal líquido
dos tubos dos televisores que emparedam meu sonho. Estou confortavelmente
instalado numa poltrona acolchoada, mulheres nuas dançam ao meu
redor, estendo o braço para acionar o controle remoto e noto uma
abelha subindo pelo meu braço quando acordo ouvindo os disparos
das Thompsons .45 do Esquadrão Anti-Sequestro.
O Verme tem
um buraco parecido com uma estrela escarlate na testa e o repórter
está dizendo que a transmissão é ao vivo e que estamos
cercados. O Chefe está com a semi-automática apontada no
ouvido do bacana. O China me joga um cartucho e a bomba de gás lacrimogêneo
explode no meio da sala, quase atinge a tv. “Fudeu!”, é o que grita
o Chefe quando dispara a semi automática no ouvido do bacana.
O Major aparece
em plano fechado, algemado e cheio de hematomas. Fala que o cara de barba
ruiva é o chefe e os repórteres fazem as perguntas, todos
ao mesmo tempo.
No noticiário
das oito, com narração do Cid Moreira e fundo musical com
a Nona de Beethoven, mostraram a família toda do bacana chorando
por detrás dos óculos escuros, o bacana, ainda vivo, pescando,
em câmera lenta, um peixe-espada a bordo de seu iate de quatro mastros,
o delegado que comandou as investigações e a operação
de resgate dando adeusinhos na sacada de um apart-hotel, um apresentador
de tv nos chamando de animais, uma passeata das Senhoras Católicas
Positivistas Contra a Violência e o momento exato que a multidão
ensandecida invadiu o distrito para nos linchar.
Jorge Mendes
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