ZÉ PEREIRA
Dormi lá pelas tantas. Um dia para ser esquecido. De novo tudo que
eu não queria, tudo que eu ainda sentia quando a conheci.
Levei flores, bombons...o de sempre. Pensei em tudo e ela adorou.
O dia mais feliz, essas coisas todas. Por um momento, paixão.
Um momento só. Durou dois meses, não mais. O tempo
do namoro. Depois, mais nada. Emoção nenhuma. Só o
vazio em que caí e o sono que não vinha. Suzane aqui
do lado. Ronca. Nesses 20 anos, ainda não me acostumei.
— Pereira?
— Oh, Pereira! Acorda, já são cinco horas! Não
vai trabalhar, não? Só quer dormir! Hoje é segunda-feira,
acabou a farra!
Pisquei os olhos. Direto para o banho. Quente, bem quente. Só
isso me desperta. E esqueço. Querer é poder, o bom
e velho vovô Dario dizia. Cansou de me dizer, é a verdade.
— Pereira, olha a hora! Vai perder o direto!
— Eu quero, vovô, eu quero...
Raras vezes saía assim, barba feita. Olhos injetados sim, mas
barba feita, não. Coisa minha, só minha. Rezar, também.
Sempre. Faço o terço e tudo. Ave-Maria, Pai-Nosso,
tudo. Li a Bíblia, forçado. Não entendi nada. Diziam
que era isso mesmo, tinha é que ler. Acho que por isso sou assim.
Não gosto de interpretar, entender. Meu irmão Paulo,
que é espírita, falou em Allan Kardec, Léon
Denis, Chico Xavier, quis me explicar. Mas eu não quero.
Uma hora na fila e peguei o direto. Sonhei com vovô Dario. Vinha
de branco, reluzente. Bem diferente de quando foi, magro e abatido pelo
câncer, quimioterapia e tudo o mais. Vinha sorrindo, queria me levar.
Por um momento, fui. Rimos muito, muitas lembranças. Todos
estavam lá, perto, bem perto.
Olhei bem meu avô, no fundo de seus olhos claros, que me hipnotizaram.
O sorriso era brilhante, os cabelos brancos como nunca. Mas me interrogava,
eu sabia. Naquela calma toda, queria alguma coisa.
Tudo se apagou. Barulho, tumulto, incômodo e um caminho estranho,
duro, seco. Não sabia para onde ia, meu avô sumiu, olhei
para o lado. Um cara dormia. Era a Brasil, a avenida mais árida
ainda com aquele sol irritante refletido nos olhos. Esqueci qual era o
lado da sombra, nunca me lembrava.
As imagens voltavam, iam e vinham aos poucos. Algumas, gravei bem,
outras se perderam. E tudo o que falei aqui, creio, é mais do que
tudo fruto da minha imaginação.
Desci na Rio Branco. No burburinho, me sentia melhor. Mais à vontade.
Às vezes, inventava horas extras e mais extras de alívio.
Não que traísse Suzane, ou que já tivesse intenção.
Roberta, minha chefe, era bem tentadora. Bem mais nova do que eu e, ainda
por cima, chefe. Isso mexia comigo, não sei bem. O que sei é
que ela, às vezes, me olhava de um jeito, mas de um jeito bem diferente.
Solícita, quase implorando. Em outras, profissional. Sabia mexer
comigo e com memorandos, em qual ordem não sei e também não
faz mal.
Um pouco antes de subir, ali na esquina do Ouvidor, parei. Sempre parava
na banca de cachorro-quente do português e falava de futebol.
Ótimo papo esse português. Não sei bem, mas o sotaque
e a voz alta lhe davam um tom autoritário, que assustava alguns.
Mas era meigo o portuga. Boa praça. Um pouco desconfiado, mas boa
praça.
— Décimo-quinto, por favor.
Sempre subindo, só não subia de vida. Auxiliar de escritório
há cinco anos, sem perspectivas. Uma vez, estive disposto. Uma vez
só. Ia estudar, progredir, ia mesmo. Mas aí, bem, aí
entre o querer e o poder, novamente...Verbos malditos!
— Quinze!
— 'brigado, Jorge.
— Nada, mer'mão.
Parei no espelho grande da ante-sala. Cada vez mais careca. E barrigudo.
Se aquele espelho refletisse minha alma, acho que estaria mais decepcionado
ainda. Aparências.
— Pereira, como vão as coisas?
— Tudo bem, dona Roberta.
— Tenho notado você um pouco triste, ultimamente. É só
impressão minha ou o quê?
— Acho...acho que sim, dona Roberta, acho que sim.
Os olhos dela me fuzilavam, verdes, lindos, profundos. Senti saudades,
mas não sei de que.
— Você pode ficar até um pouco mais tarde hoje?
Aceitei não sei nem como. Juro que não falei nada. Se
a palavra saiu, deve ter sido expulsa da minha boca. Fugia de mim mesmo
nessas horas. E às vezes não me reencontrava tão cedo.
Aquela segunda-feira passou inteira assim, eu nos meus recalques e dúvidas
e o dia me consumindo, voraz e impiedoso. Às cinco, um pouco antes
de encerrar o expediente, arrumei um pretexto de ir à rua.
— Pingado, por favor.
O café me faria bem, daria tempo de pensar em algo, se minha
timidez desse trégua. Também precisava avisar Suzane, ia
chegar tarde. Sei que isso, às vezes, era um alívio para
ela. Olhei para o alto, o tempo começa a ficar carregado.
Lá pelas sete, depois de já ter avisado Suzane e folheado
por quatro vezes uma revista de modas, vi dona Magda, a gorda secretária
de Roberta, sair do escritório. Não sei por que, mas toda
noite ela ficava até tarde reunida com minha chefe. Achei que iria
me mandar entrar, mas ela apenas se despediu e foi embora.
Folheei a revista mais umas duas vezes, dei umas voltas pelo vazio
escritório e vi a chuva começar a cair, forte e com trovoadas,
intensa como o meu coração. As pessoas corriam, procuravam
abrigos. Sentei de novo e pude ver, pela porta entreaberta, minha chefe
ao telefone. Ria, ria alto, bem descontraída.
Mais meia hora e me chamou. Falou de uma viagem a Nova York. Negócios,
ela disse.
— Sei que você e dona Magda vão morrer de saudades, mas
eu volto em duas semanas. Não precisam chorar.
Soltou um risinho discreto, quase sarcástico. Eu me limitei
a esticar os lábios, reação ridícula e dispensável.
— Você bebe, Pereira?
— Só de vez em quando.
— Hoje é dia?
— Não costuma ser.
— Que tal uma exceção?
Seguiu em direção ao bar. Minha personalidade agora se
resumia em escolher marcas. Optei pelo Chiva's, com gelo. Ela, Buchanan's.
Sabia que me fuzilava com os olhos. Abaixei a cabeça, como sempre
fiz na vida. Depois do silêncio eterno de alguns segundos, ela falou.
Perguntou algo sobre o trabalho, eu acho.
Foi aí que notei. Estava sentada na mesa, bem em minha frente,
pernas cruzadas, coxas à mostra. Foi o que meus olhos viram, antes
de se encontrarem com os dela.
O relógio lá atrás marcava nove. Suzane, com certeza,
já preparou o jantar. Meu estômago e meu coração
dão sinais de impaciência e irritação. Roberta
chega mais perto, começa a chover e meu coração acelera
de vez.
Um temporal caiu na cidade, levando junto barreiras e encostas. Pistas
interditadas, ninguém passava na Brasil, tomada por um longo engarrafamento.
O calor ainda era forte à noite. Motoristas suavam com os carros
fechados, nas ruas ninguém de guarda-chuva. O sol intenso mais cedo
disfarçou o que vinha por aí. Quatro horas de um autêntico
dilúvio.
O português fechou a banca cedo hoje. Na Rio Branco cheia de
poças, segunda à noite, só os costumeiros mendigos
deslizando em suas camas de papelão.
— O que será que houve, dona Ana? Será a chuva?
— Não sei, dona Suzane, deve ser. Ele nunca demorou assim, não?
— Não mesmo. O máximo que ele chegou foi nove horas,
uma vez. Já são 11, e nada. Estou preocupada.
— Por que a senhora não liga para o escritório?
— Já tentei, mas o orelhão da padaria tá quebrado.
— Tem um do outro lado. Eu vou com a senhora lá.
— Ah, dona Ana, muito obrigada. 'Tô' tão nervosa. Vou
pegar o guarda-chuva.
A chuva já diminuía, mas as linhas ainda estavam bloqueadas,
não havia como entrar em contato com o marido, envolvido numa aventura
da qual jamais iria se esquecer.
Entendi o que era a traição sentado ali, poltrona giratória,
olhando a chuva pela janela. Roberta foi, tinha que pegar avião
cedo, eu fiquei. Esgotado. A imaginação é mesmo um
engodo, fruto do delírio. Duas horas de delírio em meio a
uma noite chuvosa de segunda-feira.
Pereira ouve um rádio cheio de estática, que dá
todo o plantão da chuva. À meia-noite decide ir embora. Quando
desce o prédio, ela cai forte de novo.
— Agora eu não volto!
Caía na minha cabeça como um pesadelo. Decidi correr, a coisa
mais óbvia naquele momento. Em direção à rua
do Lavradio. Torcia, ainda sem muita esperança, que houvesse um
ônibus novinho em folha, cheio de lugares, esperando apenas por mim
para dar a partida. Torcia também, e aí com menos esperança
ainda, que a Brasil estivesse transitável e sem enchentes e que
Suzane dormisse o sono mais tranqüilo do mundo quando eu chegasse,
só levantando a cabeça para dizer:
— Meu bem, vai tomar um banho, a comida está quente no forno.
Foi em meio a essas divagações que tropecei em plena
Rio Branco e caí de cara numa poça d'água. Não
sabia o que havia me derrubado. Olhei para trás e, aí sim,
vi um estranho volume, gesticulando.
Tropecei em um mendigo, que me xingava raivosamente por ter atrapalhado
seu sono. Dele só, não. Também ouvi desaforos da mulher,
de outro homem, um pouco mais velho, e de uma criança que dormia
numa caixa de papelão, abraçada a um vira-lata. Nem preciso
dizer que o animal desandou a correr como um louco atrás de mim,
ecoando seus latidos agudos pela solitária avenida.
Na corrida, escorreguei e caí. Meti a cara numa poça
d'água e o último som que lembro foi de um latido distante,
quase sumindo.
Quem me acordou no dia seguinte foi o português. Já eram sete
e meia, começava o burburinho da Rio Branco e eu terminava de forma
melancólica minha aventura adúltera.
Roupa rasgada, joelho ralado e uma enorme mancha roxa na testa. O sol
já dava seus sinais de vida, o dia lindo, sem nuvens, nem chuva.
Depois, vim a saber. Mais de 50 mortos pela cidade, centenas de desabrigados
e ruas e casas repletas de lama. Na Rio Branco, só algumas poças,
inclusive aquela em que eu caí, ali, bem pertinho de mim. A família
de mendigos já tinha recolhido seus papelões; o cachorro,
provavelmente em algum botequim devorando restos de coxinhas mal-passadas.
Quando o português me levantou, vi tudo girar, a pancada ainda
doía. Boa praça esse português, me levou ao Souza Aguiar
e ligou para a padaria da esquina, já com a linha restabelecida,
avisando Suzane. Quando levantei os olhos, ainda meio sedado e numa sala
superlotada, fui reconhecendo os vultos.
Suzane, com os olhos vermelhos de uma noite insone, estava de mãos
dadas com a vizinha. As duas estavam acompanhadas de dona Magda e de meu
irmão Paulo. Fui contanto tudo, à medida que a consciência
voltava...a tempestade, as ruas alagadas e a heróica tentativa de
voltar para casa. Fui sincero até onde pude, omitindo apenas as
loucuras que se passaram naquele escritório entre nove e 11 e meia.
Para criar um certo drama, inventei um assaltante na história em
vez do cachorro, até porque minha carteira sumiu mesmo.
Causou efeito. Se não me engano, dona Magda e a vizinha de minha
esposa sentiram a maior pena do mundo. Suzane chorava copiosamente, mas
meu irmão Paulo não esboçava nenhuma reação
nem tirava os olhos dos meus, como se entrasse em minha memória
e revelasse tudo o que ocultei.
Quando Suzane passou a mão em minha cabeça e me deu um
rápido beijo nos lábios, foi que percebi que estava com uma
faixa na testa. A enfermeira disse que não era nada grave, a recuperação
seria em casa e ficaria uma semana de repouso.
Dona Magda fez ali mesmo o recibo de dispensa e me deu os maiores votos
de recuperação do mundo, prometendo me visitar, idéia
da qual, eu espero, ela desista.
Lá pelo quinto dia de repouso, cansado de tanto ócio e paparicos,
sonhei novamente com vovô Dario e seu olhar interrogativo. E no sexto
dia, e no sétimo dia. E também quando voltei a trabalhar.
Me perseguia, mas não me incomodava. Apenas me olhava, com toda
a afeição com que sempre me tratou.
Foi a partir daí que minha consciência começou
a doer tanto quanto a pancada. Ainda mais que Suzane começou a me
tratar com o maior carinho do mundo após o acidente, se revelando
a mulher amável do início do casamento.
Ao mesmo tempo, Roberta voltou de viagem mais criativa do que nunca.
As horas se acumulavam no mesmo ritmo que as dores de minha consciência.
Não tinha mais dúvidas: minha chefe me amava.
Passei dois meses nesta angustiante rotina. Decidi então que
esperar mais seria aumentar meu sofrimento. Contei tudo, primeiro ao meu
irmão, que não ficou chocado nem esperei que ficasse.
Depois de uma longa conversa, sem falsos moralismos, mandou apenas que
eu fizesse o que a minha consciência mandasse.
Minha consciência, no entanto, já se confundia com os
desejos de meu avô. Não sei até hoje se foi isso o
que ele mandou, mas acabei contando tudo para Suzane também. Talvez
o modo de contar tenha sido inadequado, ou o local, não sei. O que
sei é que, duas semanas depois, ela voltou para a casa dos pais,
em Petrópolis.
Por um lado foi bom. Estava agora livre e pronto para Roberta. Poderíamos,
enfim, "unir nossos trapos". Hoje, cinco anos depois, ainda me questiono
sobre o que fiz. Talvez fosse bom estar com Suzane roncando ao meu lado
ainda, mas como poderia adivinhar?
Roberta, quando soube que Suzane foi embora, passou a me evitar de
forma inexplicável. Nem me olhava mais com aqueles lindos e verdes
olhos. Só emitia ordens, que dona Magda, que nunca foi mesmo com
a minha cara, repassava com o maior prazer do mundo. Dona Magda voltou
a ficar até tarde com Roberta no escritório. Isso durou um
mês. No mês seguinte, Roberta pediu demissão.
Casou com um investidor americano que estava de passagem pelo Brasil e
se apaixonou por ela em duas semanas. Imagino o que ela deve ter feito
com ele. Vivem tranqüilamente numa casa de praia na Califórnia,
com um casal de filhos lindos, é o que dizem. Deixou-me uma carta
de despedida, tão seca e fria quanto a carta de demissão
sumária que recebi da nova chefe.
Com o dinheiro do Fundo de Garantia, resolvi reformar a casa e abrir
uma barraca de cachorro-quente no Centro. O português entrou em sociedade
comigo e agora já temos cinco barracas, incluindo a que ele já
tinha.
Estou aqui agora, numa delas, no Largo da Carioca, de frente para a
Rio Branco. Às vezes, saio daqui tarde da noite e levo sanduíches
para os mendigos, o que me faz bem. Talvez seja saudade, remorso ou, simplesmente,
caridade. Nunca mais vi Suzane, nem casei de novo. Também faz tempo
que não sonho com vovô Dario. Vou fechar a barraca cedo hoje.
Começou a chover e as pessoas correm para baixo dos abrigos.
André Luis Mansur
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