A morte de Nietzsche

          “Minha primeira entrevista. Oportunidade única de mostrar meu trabalho num grande jornal. Preciso desse emprego. Não posso voltar para a redação com as mãos vazias. Ademais, talvez essa seja a sua última entrevista, disseram-me que está muito doente”, esses pensamentos agitavam minha cabeça, enquanto esperava o trem para chegar na casa de Nietzsche às 16 horas, como combinado, por carta, com Lou Salomé, que naqueles dias estava cuidando dele.
          Enquanto velhas casas, crianças brincando e a paisagem passavam pela janela do trem, eu, aflito, atônito, olhava para as perguntas que fiquei preparando meticulosamente durante seis madrugadas. “Estão todas ridículas, superficiais, infantis. Não! não, estou apenas nervoso. Preciso separar a minha admiração pessoal pelo entrevistado e questioná-lo com distanciamento, como jornalista. Isso foi minha primeira aula de redação na Universidade.Tem que ser uma entrevista histórica. As perguntas, não podem estar tão ruins assim e a essa altura não posso mais saltar do trem”.
          Às 15: 30 horas, cheguei à estação. “Ainda tenho tempo para tomar um chá e fumar um charuto. Vai me fazer bem”. Chamei uma charrete e desci a cinco quarteirões dali.
          “Estava à sua espera”, disse-me Lou Salomé, “Como foi de viagem?”, pergunta, com com sorriso leve, lábios rubros. Estava todo de negro, e a sua pele ficara ainda mais pálida. “Foi tranqüila”, disse com um sorriso tímido, revelando insegurança. “Siga-me, por favor”, disse-me seguindo à frente pelas escadarias.
          O quarto estava mal iluminado, apenas duas luminárias. Ao entrar na penumbra deparei-me com a silhueta de Nietzsche deitado na cama. Peguei uma luminária da cômoda e aproximei-me dele. Estava imóvel, queixo encostado no peito, com o olhar fixo para lugar algum. O olhar sem brilho refletia seu vazio interior. Dei-lhe boa tarde, me apresentei e disse-lhe que estava ali para conversarmos sobre a influência do pensamento dele sobre a nova geração de filósofos neste final de século XIX. Mal terminei a frase, ele, bruscamente, interrompeu: “Todas as minhas verdades são para mim verdades sangrentas”. Anotei, mas fiz que não ouvi. Ele continuou; “Ah, os homens... suas máscaras aderiram tão intensamente em suas faces que confundem-se. Por um propósito dionisíaco, a solidez do martelo, a alegria própria da destruição, são premissas absolutamente necessárias. Sede rudes”. Eu acelerava na escrita para não perder nada. Era notável seu caos interior. O olhar distante denunciava o seu delírio. Eu ali, sem saber o que perguntar, arrisquei: “Por que os homens perderam sua essência?”. “Estou farto desses anestesiados, dessa moral imoral, dessasvidinhas inócuas. Estou farto das pseudo-verdades”. “Desculpe, mas o senhor não me respondeu”. “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar, para atravessar o rio da vida — ninguém, exceto tu, só tu meu caro jovem”. Quer um si-mesmo, e assim te tornarás um si mesmo”. Eu continuava imóvel, olhos arregalados, os sentidos todos acesos, tentando apreender a agilidade e a força daquela mente, que mesmo moribunda, chicoteava idéias em todas direções.
          Tirei do bolso as questões que trouxe prontas. “Muitos criticam o senhor pelo pensamento labiríntico. A sua filosofia não é cartesiana, nem obedece a esquemas. O senhor se considera filósofo?” “É somente o depois do amanhã que me pertence. Alguns homens já nascem póstumos. Eu não sou um homem, sou dinamite”.
          Olhava para ele e não via mais sangue em seu rosto; um suor frio brotava da sua pele pálida. Entrei em pânico. “Professor, professor, vou chamar um médico?”. “Conheço o meu destino. Sei que algum dia o meu nome se aliará, em recordação, a algo terrível, a uma crise como nunca ocorreu, à mais tremenda colisão de consciências. A uma sentença definitiva, pronunciada contra tudo aquilo que se acreditava”. Seu corpo magro cai sobre a cama. Após alguns minutos em silêncio disse-me com suas forças visivelmente se esvaindo: “Nosso século que tanto fala de economia, é um esbanjador: esbanja o mais precioso, o espírito. Por isso, a partir de agora me resguardo...”. E nunca mais falou.
          Meu chefe não quis editar o teor daquela conversa. Em sua opinião, as frases estão desconexas e delirantes para o leitor comum. Disse que iria vender por uma fortuna a uma editora interessada em inéditos do filósofo.
          Hoje, velho e aposentado, revendo minha trajetória, constato que tudo que fiz, só fiz por ter assistido aos últimos minutos da vida de Nietzsche.

                                                                        Paulo Andrade

 

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