O circo chegou. O menino foi ver levantar a lona. Ver os bichos, chegar bem perto e sentir o cheiro. Tudo dentro de uma ordem preconcebida. Um puxa corda daqui, outro corre acolá, numa azáfama louca, tudo muito bem coordenado. Alguém lá no meio dirige, dá ordens. Sem gritos.
Os olhos do menino não param, vê tudo. Maravilha-se. Procura adivinhar quem seria o palhaço, no meio daquela gente. Os amarra-cachorros eram bem definidos entre os que trabalhavam, tinham um jeito diferente, talvez uma mistura de humildade e orgulho por estarem naquele ofício. O menino sabia quem eram os artistas, embora com roupas comuns, de gente comum. Tinham postura distinta dos demais, um ar mais confiante, como se dissessem eu sou o trapezista, eu sou o mágico, eu sou o domador... Todos trabalhavam, cada um fiscalizando a sua área, testando as cordas o trapezista, o mágico conferindo o material, o domador conversando com o alimentador das feras...
De repente, a movimentação é outra. Todos unem-se num esforço e levantam o mastro central, com ele a lona, como se armassem uma grande barraca. A barafunda vai tomando forma de circo. A meninada grita, extasia-se. O menino vê tudo, seus olhos não param. Ele não é como os outros. Como não é, se é menino também? É menino sim, mas não como os outros. Para explicar há que inventar palavras. Então fica só assim, ele não é como os outros. É o bastante.
Um cheiro de cascas de arroz infiltra-se nas narinas. As cascas assentam-se em grossa camada no centro, onde armam o picadeiro, e nos lados, onde enfileiram as cadeiras em semicírculos, não muito firmes no terreno irregular.
O circo toma forma. Arma-se o poleiro também. O bom do circo é o poleiro. Colocam-se as cortinas que dão acesso aos bastidores, que é o fundo do circo, perto dos trailers e das jaulas. Esticam-se fios elétricos. Limpa-se, guarda-se o material utilizado. Confere-se tudo, como o piloto confere o painel do avião na hora de decolar. Tintim por tintim, uma lição decorada, repetida centenas de vezes pelas cidades onde passam. O circo está pronto para estrear, no outro dia. Os artistas alojam-se nos trailers, alguns em hotéis, os que têm crianças. Para eles é rotina. A estréia do circo é acontecimento importante na cidade, fora da rotina. Principalmente para os meninos. Para os adultos, para todos, por que não?
O menino vê tudo e antecipa o gozo de ver o palhaço dando piruetas, e treme de medo do leão, que agora dorme em sua jaula. O leão é velho e cansado, ouve-se dizer.
Entristece, de repente. Não tem dinheiro. Como entrar no circo?
Um assobio e a meninada reúne-se em torno de um rapaz. O menino também se aproxima. E ouve. O rapaz dá instruções: eu sou o palhaço da perna-de-pau. O menino regala-se por conhecer o palhaço sem cara de palhaço, isto o torna importante, vai dizer em casa que conheceu o palhaço, conversou com ele. Ele é bem diferente de quando está com cara de palhaço, madrinha. O rapaz continua: amanhã vamos sair pelas ruas, vocês todos me acompanham. Eu grito "hoje tem tem tem"? Vocês respondem "tem, sim senhô," tá bom? Depois eu continuo: "Hoje tem goiabada? Hoje tem marmelada?" Vocês vão respondendo "tem sim senhô" "O palhaço o que é?" "É ladrão de muié!" Tudo certo? Cada menino vai receber uma marca de tinta na testa pra entrar no circo de graça.
Júbilo geral, inclusive dele. Estava resolvido o problema da falta de dinheiro. Era só acompanhar o palhaço e gritar... Fácil e divertido. À noite, no poleiro, haveria o maravilhamento com a função do circo, com as luzes e a música, e as palhaçadas do palhaço Corrupio. A pipoca. Para a pipoca ele tinha uns trocados.
Não dorme naquela véspera. A madrinha desconfiava de seu jeito desconfiado. O que aconteceu, menino, parece que viu passarinho verde? A madrinha criara-o. Era como mãe. Mãe? Madrasta. Trazia-o num cortado feio. Não era moleque de rua, dizia. Devia agir como menino educado. Mas esquecia que era um menino e tirava dele todas as alegrias que um menino deve ter, como esta de ir à função do circo. Já avisara que não lhe daria dinheiro para o circo. Daí a saída de acompanhar o palhaço. Escondido dela.
Então, saiu com o palhaço no outro dia. Andou em todas as ruas da cidade anunciando o circo, e só ficou longe do grupo quando passou em frente de sua casa. Disfarçou. O palhaço da perna-de-pau na frente, galeando o corpo e a meninada atrás, gritando, feliz, o refrão tem sim senhô. Depois, no fundo do circo, no lado contrário da entrada, a marcação na testa com uma tinta branca. Era a senha para entrar de graça.
Chegou direto para o quarto para que a madrinha não visse a marca de tinta branca no meio da testa. A noite estava longe. Tinha de esconder a marca, até lá. Gritou: madrinha, vou estudar. Fechou a porta. A madrinha desconfiou mais ainda, não era de seu feitio ser tão estudioso, e de se fechar no quarto. Madrinha, eu faço meu dever da escola e a senhora me deixa ir até a porta do circo, deixa? A madrinha pensou antes de responder. Vai e volta logo, gritou lá da cozinha. Toma banho, primeiro. Tomar banho? Tirar a tinta da testa, o seu salvo-conduto? Depois de algum tempo, a madrinha achou que estava tudo muito quieto, quis entrar no quarto e arranjou uma desculpa. Abre a porta, quero tirar umas coisas do armário. Pensou o menino: agora ela vê a tinta. E viu. Que sujeira é esta? Vai limpar isto agora. Aaaagoooora! Foi-se a função do circo. Sem a tinta, teria de pagar a entrada.
Chega a noite. Ainda bem que a madrinha o deixou sair... vai até a porta do circo. Todos estão entrando. Os meninos ricos comendo pipoca e algodão doce. Todo mundo feliz. Ele, tristonho, ali olhando e pensando no que fazer... Ouve o primeiro sinal e a gritaria lá dentro. Aperta-lhe o coração. Contém o choro. A cidade chegando e entrando, lotando as cadeiras e o poleiro. O prefeito e o juiz, em camarotes reservados. A música. Uma marcha alegre, gravada em disco. O circo não tem banda de música. É pobre também. O segundo sinal acelerou as batidas de seu coração. Alguém do circo deu fortes batidas num pedaço de trilho com um martelo. Era o sinal, o segundo.
Vê o vigia do circo andando pra lá e pra cá, do
lado de fora, para impedir a entrada dos penetras. Ele vai até à
frente, volta até os fundos, em passos lentos. Passa por ele. Não
olha. Da primeira vez não olha, mas olha da segunda vez. Vê
o menino triste. Pergunta porque está triste. O menino conta o acontecido.
A tinta na testa teve de tirar por causa da madrinha. O vigia não
fala nada. Continua pra lá e pra cá. Quando vai, some alguns
minutos e reaparece, quando vem. Toda vez que passa olha o menino. E cada
vez demora mais, quando vai lá pra trás. A função
começa. Escuta anunciar o domador. Música. Gritos. O vigia
passa e olha para o menino triste, mais uma vez. Lá dentro, a função
em andamento. O rugido do leão e o estalo do chicote do domador.
O vigia some lá pra trás. Prolonga a demora. Num ímpeto,
o menino levanta a lona e passa por debaixo e assoma assustado e glorioso
dentro do circo, debaixo do poleiro. Luzes. Barulho. Ninguém o percebe.
Todo mundo com a atenção no leão. Rápido, empoleira-se
na arquibancada. O mundo abre-se aos seus olhos. Por baixo do pano, madrinha,
por /baixo do pano! Hoje tem, tem, tem? Tem, sim senhô!