Viver e Cantar

Era mar... Um dia lindo, sol amarelo, céu quente. Tinha muito tempo que eu não via o mar. Tinha tempo que não olhava pro céu e sentia o sol, coisa de bicho da cidade que ganha a vida projetando filmes de arte num cine clube, e troca a noite pelo dia...

Desse dia, eu queria mesmo era ficar sem fazer nada, só que a cabeça cismava em querer entender por que eu, com trinta e tantos anos tinha que ganhar a vida administrando um cinema e não fazendo filmes, escrevendo coisas... Não que eu não gostasse do que eu fazia, pelo contrário, gostava muito. Cinéfilo, assistia a tudo que eu queria e ainda ganhava pra isso. Mas a coisa é que eu sempre me vi artista, sempre ouvi que eu era artista... Daí também, que como pensar nisso sempre me deixava mal; ansioso, resolvi dar um tempo e encharcar o pensamento com uma boa cerveja pra ver se de porre, ele ficava mais meu amigo e não questionava tanto a minha vidinha... Foi aí que tudo começou...

Chegando na barraca de bebidas eu percebi que todos os homens da praia queriam tomar cerveja também. E havia apenas um garoto de cabelos bem curtos, rodeado por quatro bancadas repletas de pançudos tentando sua vez no paraíso. Olhei em volta, vesti minha armadura de cidadão medieval e entrei na batalha pela cerveja:

 — Porra garoto! Que merda! Passa uma cerveja logo, tô aqui há meia-hora!

O garoto, esteva de costas pra mim, resumiu-se, a, com gesto muito cordial (levantou a mão, os dedos recolhidos e apenas o dedo médio em riste), colocar-me no meu devido lugar na fila.

Meu censo de justiça, agüentou por alguns segundos ser tratado como todos domingueiros mortais, até que perdeu o decoro e explodiu:

— Pô garoto, será-que-por-favor-dá-pra-você-me-atender? Por favor !?

Foi aí que ele virou pra mim, tirou os óculos escuros e disse:

— Garoto, é tua mãe! Dá pra esperar sua vez, ô babaca!

                                                                 . . .

Chamava-se Ana Luiza e não era um menino. Tinha dezenove anos e era dona de um lindo par de olhos que, ora eram verdes, ora eram azuis, ora eram cinzas...

Não sei o que aconteceu em mim exatamente, mas foi ali, chapando de frente com aquele par de olhos que eu percebi que tinha perdido muita coisa durante muito tempo... era como se naquele exato momento alguém tivesse suavemente cutucado minhas costas e com um generoso sorriso me dissesse:
— Olha!... Percebe... Tá vendo sua vida passar ali, pela janela?

E eu, acabei transformando o meu dia de folga, naquelas férias que faziam quatro anos que estava me devendo.

Freqüentei durante o final do verão inteiro a barraca que a Aninha trabalhava, ela freqüentou a casa onde eu estava, sempre no começo do dia, pra tomar café e falar de coisas; mas, principalmente para rirmos. Era assim que eu despertava pra vida: com cheiro de sol nascendo e gosto de sorriso. A vida estava sendo singela comigo...

Teve uma noite, quando a gente já estava muito amigo, que nós resolvemos ir a um bar numa cidade vizinha, coisa de alguns quilômetros... Tinha nessa noite um grupo instrumental, que tocava jazz e outras coisas. Aninha foi quem insistiu:

— Tem um show lá, vamô?

E sorriu. Sorriu simples, de um jeito que ela sempre sorria, com os olhos sorrindo, com a palavra sorrindo, com a boca... Eu fui.

Depois do show a gente ficou lá, bebendo... conversando... Ela contando dos namorados dela, da sua primeira vez, do trampo na praia que era pra não abusar do dinheiro dos pais, de liberdade, do ser humano, de tanta coisa...

Tudo nessa noite ia bem, até que ela voltando do banheiro encontrou alguém, com quem trocou um abraço e um lindo e demorado beijo. A inveja me transformou em homem sério, começamos a falar da faculdade que ela fazia, a cabeça voltou a funcionar, e eu puxei pro meu lado, pras minhas frustrações, comparando a minha vida com o que poderia ser a vida dela, tentando ser o professor, dar lição de moral, bancar o pai, ou seja,... que bosta!

— Por que a gente não pode só viver e cantar?

E pela primeira vez eu vi aquele par de olhos, que ora eram azuis, ficarem vermelhos de dúvida, e deles, brotar uma lágrima, preciosa, cristalina, daquelas que reflete a luz da lua, e que atinge a tua alma, sem ao menos você poder dizer: espera!!!!!! E... pronto, ... definitivamente você está mudado! ... O primeiro sinal de mudança, veio em forma de uma lágrima solidária que me obrigou a virar a cabeça para um outro canto e deixar o coração afirmar: O que cê tá fazendo, com você?

                                                                                       . . .

No dia seguinte, Aninha passou cedo como de costume em casa. Eu acordei com o seu sorriso a alguns centímetros dos meus olhos. O peso dos anos e da Vodka batendo Bumba-que-meu-boi no fundo do meu peito.

— Vai, levanta seu gordo! O sol tá alto, é hora de viver...

— Deixa eu mais uns dois verões dormindo aqui, vai?... Aiii, que ressaca! Como a gente chegou ontem?

— Eu vim dirigindo! Cê num lembra?

— Acho que eu nem lembro meu nome...

Então ela riu, me abraçou, brincou e beijou meus lábios,...

— Cê prometeu ir nadar comigo hoje, lembra?

— Promessa de bêbado não vale!

Então Aninha, conseguiu contra todas as leis da física, colocar meu corpo em pé, a custo de carinhos e brincadeiras. Me armei de um par de óculos escuros, uma longa bermuda e um agasalho. O sol ainda não aquecia aquela manhã fria de final de verão. Fomos para praia. Ela nadava de um lado para outro e eu, acompanhava por trás das minhas lentes escuras, seu corpo, seus movimentos, sua pele... A última foto que guardo desse verão, é a dela saindo do mar, eu levando uma toalha, ela brincando de me molhar e eu percebendo o quanto, quanto era importante entender a paixão... O sol nesse dia, lembro também... não chegou a brilhar, ficou preso, atrás das nuvens, ele aquecia, mas não podia ver o que aquecia... Acho que ele ficaria orgulhoso de ver...

                                                                                       . . .

Muito tempo depois houve a estréia de um filme, muita gente, badalação, muito trabalho, o cineclube lotado... Estava inverno de conhaque, de casacos, de fumaça na boca... Tinha tanta gente que os quadros tiveram que se espremer nas paredes do saguão. Muitas caras, muitas bocas, muitas palavras, mas poucos sorrisos sinceros... com exceção de um, no fundo, no final, quase que no escuro. Sorri! Sorri por que reconheci nele o sorriso de Aninha. Caminhei até ele:

— Legal que você veio.

— Legal te ver.

— Você tá linda.

— Num vai me chamar de garoto?

— Não. (e a gente parou, um no olho do outro)

— Vão filmar teu roteiro, né?

— É.

— Legal...

— É, legal.

— A faculdade tá legal, acabo no final do ano...

— Eu soube que você tá trabalhando.

— Como você soube?

— Eu assino o Diário...

— (ela riu desconfiada) Desde quando?

— Desde abril.

E novamente eu vi o sorriso pleno de Aninha, aquele, que sorriam os olhos, a boca, as palavras... Novamente Aninha beijou meus lábios, com a cumplicidade que nos foi dada. Me abraçou e se despediu, como quando era o nosso sempre. Eu virei de costas fazendo de conta que não ia ficar olhando ela sumir na multidão, mas em seguida acompanhei seu braço encontrar o abraço de um garoto, e juntos desaparecerem pelas ruas da cidade. Então, ainda deu pra olhar pela janela e encontrar a lua. Respirei fundo, abri um grande sorriso pra vida e o reguei, com uma doce e longa lágrima. 

Num sábado de abril/97 das 22:00 até o domingo às 02:30, com estalos de conhaque, e uma gatinha no meu colo.

Jaime Celiberto
 

 

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