O FIO CORTADO DE ARIADNE
“No começo de tudo, tinha um erro”.
João Guimarães Rosa
As bússolas
não fizeram parte da minha infância. Eu vivia perdido. Sempre
virando na esquina errada, errando o cruzamento, passando direto pela quadra
certa, trocando os nomes das ruas e confundindo os números das casas.
O meu próprio endereço era para mim algo impossível
de se gravar. Desaparecia da minha memória tão facilmente
como quem diz “vou até ali e já volto”.
A verdade é
que desde o início o mundo foi para mim um labirinto e algum sacana,
por pura perversão, cortou meu fio de Ariadne e me deixou para sempre
perdido em algum corredor frio e escuro do Tempo.
É certo
que não segui a regra básica de virar sempre à direita
em todo cruzamento e nem o teorema de caminhar o mais rápido possível
para a descoberta da saída. Mas ninguém me explicou nada.
Apenas me deram uma palmada na bunda e me deixaram só sem nenhum
mapa global. Pierre Rosenstiehl não ia gostar do que fizeram
comigo.
O fato é
que a extensão e a largura das ruas e avenidas me tiravam o fôlego,
turvavam minha visão, me faziam girar em círculos como um
pião descontrolado. Eu nunca sabia onde estava, para onde ia e como
voltaria ao ponto de partida. Eu era assim como uma árvore plantada
de cabeça para baixo, indo à deriva e em queda livre lá
para o fundo.
Minha mãe
tentava me dar um rumo. Costurava no forro de minhas roupas o endereço
de nossa casa. Eu ficava parecendo uma carta selada, um desses baús
de viagens todo etiquetado, me sentia como uma garrafa perdida no oceano,
quem me encontrasse iria ler: “Por favor, conduza esse idiota para casa.
Ele é manso e não oferece nenhum perigo. O endereço
é: Rua Principal, 77 - Vila Americana. Obrigada por ajudar a mãe
de um débil mental.”
Era humilhante
e minha mãe não me dava chances. Ela queria meu cérebro
enrolado no mapa da cidade. Não se conformava em ter um filho tão
estúpido, que não conseguia distinguir a esquerda da direita,
o Norte do Sul, o Leste do Oeste, a direção certa dos próprios
passos, a linha do horizonte da ponta do nariz. Para minha mãe o
mundo era uma auto-estrada em linha reta e as curvas que eventualmente
apareciam no percurso não a jogavam para fora da pista. Eu, pelo
contrário, estava sempre na contramão, com o motor fundido
na subida e os caras estavam me rebocando para o fundo do precipício.
As luzes vermelhas estavam todas acesas no acostamento e na minha testa
eles pregaram a placa de aviso: “Cuidado: Sujeito à guincho”.
De tanto minha
mãe insistir na minha falta de senso de orientação
eu comecei a acreditar que havia me perdido para sempre. Passei a ter medo
até de ficar sozinho. Eu pensava: “Se eu ficar só posso me
perder de mim e é aí que fodeu de vez!” Também não
queria mais sair de casa. Fiquei com medo de me afastar demais de minha
zona de proteção e não conseguir mais voltar. Era
o terror que ia aos poucos abrindo esse buraco negro que trago em alguma
parte da cabeça.
De tarde, depois
do banho e do café com leite com pão e manteiga, minha mãe
me sentava na varanda e me fazia desenhar três milhões quatrocentas
e quinze vezes os pontos cardeais, a Rosa dos Ventos, a estrutura geológica
do mundo, as planícies aluviais, os planaltos de lavas, os escudos
cristalinos, todo o mapa do inferno ali no Atlas Contemporâneo, bem
ao alcance dos meus dedos. Depois ela me fazia ir mentalmente dali da varanda
até o outro lado da cidade. Eu ia e ela sorria satisfeita como um
almirante da Marinha Mercante recebendo o comunicado da próxima
expedição ao Mar das Antilhas.
O que minha
mãe não sabia era que as viagens imaginárias eram
uma trilha de fácil acesso para mim que vivia com o pé atolado
naquele vácuo limoso do medo. A dificuldade toda era caminhar na
areia movediça das calçadas apinhadas de gente que me sorria
com dentes de cachorro morto, que me falavam com vozes em rotação
alterada e que cravavam bem no centro do meu desespero aqueles
olhos sem sangue de vampiros disfarçados de homens de negócios
ocupados com os índices da Bolsa.
Minha mãe
não sabia que viajar de olhos fechados e caminhar nas nuvens era
a minha especialidade. Minha carteirinha de astronauta me dava trânsito
livre a qualquer trajeto para fora do mundo. Manter, no entanto, os olhos
abertos e encarar aquela paisagem do inferno já eram outros quinhentos.
Rolar as pedras das estrada com o peito, pisar os espinhos e navegar nas
águas turvas da realidade me deixava fora do ar. Eu precisava de
uma mão que me guiasse, um Virgílio que não me deixasse
afundar na gelatina negra do mundo.
Ninguém
falava nada, mas eu sabia que já existiam planos para minha irrevogável
perdição. Eles iam comprar um bengala, um par de óculos
escuros, um pastor alemão e uma tabuletinha de metal onde estaria
escrito em letras garrafais: “Atenção: Sou deficiente visual
e mental”. Iriam pendurar a tabuletinha de metal no meu pescoço
e as letras garrafais seriam fosforescentes num tom verde-limão
para que todo mundo pudesse ler sem qualquer dificuldade, à noite
e à distância, que eu não passava de um idiota completo.
Eu também
estava sabendo que os enfermeiros e os especialistas do Estudo do Comportamento
Humano estavam esfregando as mão de contentamento e preparando suas
agulhas, bisturis e pinças, felizes com aquele sorriso de avental
engomado que eles têm enquanto se preparam para mais uma sessão
de lobotomia. “Ele não vai escapar dessa, passe-me a broca!”, diz
o Enfermeiro-Chefe calçando suas luvas de borracha. Eu sabia de
tudo e tudo estava fora de foco. Era um cerco e eu não podia escapar
porque não havia nenhum lugar seguro.
E ainda existiam
as manhãs de sábado. O dia da feira-livre. Minha mãe
dizia: ”Vamos à feira!”, e o meu coração murchava
como um tomate esmagado.
O lugar fedia
a peixe e todas as pessoas do mundo estavam ali espremidas como sardinhas
em lata, numa multidão compacta, naquela passarela margeada por
barracas, expostas como fraturas num desastre de trem, com os preços
escritos em plaquinhas de papelão, espetadas bem no topo da cabeça,
prontas para o consumo. Eu sabia, eles iam me mastigar até
eu virar um pasta de carne moída. Depois o japonês dos olhinhos
de ostras congeladas, dono da carrocinha dos salgados, ia me recolher numa
pazinha de plástico e me fritar no óleo quente e me vender
como quibe ou recheio de pastel. Eles não me enganavam.
Enquanto minha
mãe pechinchava com a feirante gorda, de sotaque estranho e bigode
de homem em cima da boca flácida, eu tentava me interessar pelos
preços do mundo. Minha mãe pedia uma baciada de vagem, mais
uma de batatas e um outro tanto de laranja lima e beterrabas. Mas as abelhas
sobrevoando o mel ácido do abacaxi meio podre me tirava a concentração
e, de repente, minha mãe não estava mais pechinchando com
a feirante de bigodes e o chão havia sido forrado com cascas de
banana especialmente para que eu patinasse, escorregasse e caísse
de cara naquela lama de suores de donas-de-casa, merda de cachorro e restos
de maçãs em estado de decomposição.
O sol das dez
horas entrava pelos olhos como gotas de limão e lá ia eu
em desabalada carreira berrando o nome de minha mãe. Os feirantes
já me conheciam. Eu os ouvia gritando meu nome do mesmo jeito
que eles gritavam os preços das mercadorias. A feira, em poucos
segundos, se transformava naquela gritaria amplificada e os meus ouvidos
eram os microfones onde todos vinham colocar a boca e soltar o seu
grito primal de “Viva o rock and roll”!
Quando a mão
pesada me agarrava pelos fundilhos da calça e me suspendia como
se fosse me arremessar para dentro de uma caixa de uvas italianas,
eu começava a entender que minha mãe estava por perto e que
não seria desta vez que eu seria vendido como quibe ou recheio de
pastel.
Minha mãe
sorria e tentava me acalmar me comprando um sorvete de baunilha com groselha
e me mandando carregar o pedaço de melancia. Aquilo pesava e minha
mãe devia pensar que com os braços ocupados minha cabeça
se manteria no lugar e não sairia rolando para debaixo das barracas.
Ela não
estava totalmente errada. Eu ficava com a melancia no braços até
ela dizer: “Tudo bem, pode subir!”, então eu me enfiava dentro do
carrinho de feira, me sentava entre as rodinhas e ficava ali esmagado como
um repolho embrulhado em folhas de jornal, com a melancia pingando sua
água açucarada nas minhas pernas, sentindo a cobiça
das abelhas me rondando com seus ferrões e torcendo com todos os
meus sentidos para que os preços não estivessem tão
altos e minha mãe comprasse tudo logo e me empurrasse para fora
daquele inferno hortifrutigranjeiro, que me conduzisse de volta para casa
sem nenhuma parada de descanso no carrinho de pastel do maldito japonês.
Jorge Mendes
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