O FIO CORTADO DE ARIADNE           As bússolas não fizeram parte da minha infância. Eu vivia perdido. Sempre virando na esquina errada, errando o cruzamento, passando direto pela quadra certa, trocando os nomes das ruas e confundindo os números das casas. O meu próprio endereço era para mim algo impossível de se gravar. Desaparecia da minha memória tão facilmente como quem diz “vou até ali e já volto”.
          A verdade é que desde o início o mundo foi para mim um labirinto e algum sacana, por pura perversão, cortou meu fio de Ariadne e me deixou para sempre perdido em algum corredor frio e escuro do Tempo.
          É certo que não segui a regra básica de virar sempre à direita em todo cruzamento e nem o teorema de caminhar o mais rápido possível para a descoberta da saída. Mas ninguém me explicou nada. Apenas me deram uma palmada na bunda e me deixaram só sem nenhum mapa global. Pierre Rosenstiehl  não ia gostar do que fizeram comigo.
          O fato é que a extensão e a largura das ruas e avenidas me tiravam o fôlego, turvavam minha visão, me faziam girar em círculos como um pião descontrolado. Eu nunca sabia onde estava, para onde ia e como voltaria ao ponto de partida. Eu era assim como uma árvore plantada de cabeça para baixo, indo à deriva e em queda livre lá para o fundo.
          Minha mãe tentava me dar um rumo. Costurava no forro de minhas roupas o endereço de nossa casa. Eu ficava parecendo uma carta selada, um desses baús de viagens todo etiquetado, me sentia como uma garrafa perdida no oceano, quem me encontrasse iria ler: “Por favor, conduza esse idiota para casa. Ele é manso e não oferece nenhum perigo. O endereço é: Rua Principal, 77 - Vila Americana. Obrigada por ajudar a mãe de um débil mental.”
          Era humilhante e minha mãe não me dava chances. Ela queria meu cérebro enrolado no mapa da cidade. Não se conformava em ter um filho tão estúpido, que não conseguia distinguir a esquerda da direita, o Norte do Sul, o Leste do Oeste, a direção certa dos próprios passos, a linha do horizonte da ponta do nariz. Para minha mãe o mundo era uma auto-estrada em linha reta e as curvas que eventualmente apareciam no percurso não a jogavam para fora da pista. Eu, pelo contrário, estava sempre na contramão, com o motor fundido na subida e os caras estavam me rebocando para o fundo do precipício. As luzes vermelhas estavam todas acesas no acostamento e na minha testa eles pregaram a placa de aviso: “Cuidado: Sujeito à guincho”.
          De tanto minha mãe insistir na minha falta de senso de orientação eu comecei a acreditar que havia me perdido para sempre. Passei a ter medo até de ficar sozinho. Eu pensava: “Se eu ficar só posso me perder de mim e é aí que fodeu de vez!” Também não queria mais sair de casa. Fiquei com medo de me afastar demais de minha zona de proteção e não conseguir mais voltar. Era o terror que ia aos poucos abrindo esse buraco negro que trago em alguma parte da cabeça.
          De tarde, depois do banho e do café com leite com pão e manteiga, minha mãe me sentava na varanda e me fazia desenhar três milhões quatrocentas e quinze vezes os pontos cardeais, a Rosa dos Ventos, a estrutura geológica do mundo, as planícies aluviais, os planaltos de lavas, os escudos cristalinos, todo o mapa do inferno ali no Atlas Contemporâneo, bem ao alcance dos meus dedos. Depois ela me fazia ir mentalmente dali da varanda até o outro lado da cidade. Eu ia e ela sorria satisfeita como um almirante da Marinha Mercante recebendo o comunicado da próxima expedição ao Mar das Antilhas.
          O que minha mãe não sabia era que as viagens imaginárias eram uma trilha de fácil acesso para mim que vivia com o pé atolado naquele vácuo limoso do medo. A dificuldade toda era caminhar na areia movediça das calçadas apinhadas de gente que me sorria com dentes de cachorro morto, que me falavam com vozes em rotação alterada e que cravavam bem no centro do meu desespero  aqueles  olhos sem sangue de vampiros disfarçados de homens de negócios ocupados com os índices da Bolsa.
          Minha mãe não sabia que viajar de olhos fechados e caminhar nas nuvens era a minha especialidade. Minha carteirinha de astronauta me dava trânsito livre a qualquer trajeto para fora do mundo. Manter, no entanto, os olhos abertos e encarar aquela paisagem do inferno já eram outros quinhentos. Rolar as pedras das estrada com o peito, pisar os espinhos e navegar nas águas turvas da realidade me deixava fora do ar. Eu precisava de uma mão que me guiasse, um Virgílio que não me deixasse afundar na gelatina negra do mundo.
          Ninguém falava nada, mas eu sabia que já existiam planos para minha irrevogável perdição. Eles iam comprar um bengala, um par de óculos escuros, um pastor alemão e uma tabuletinha de metal onde estaria escrito em letras garrafais: “Atenção: Sou deficiente visual e mental”. Iriam pendurar a tabuletinha de metal no meu pescoço e as letras garrafais seriam fosforescentes num tom verde-limão para que todo mundo pudesse ler sem qualquer dificuldade, à noite e à distância, que eu não passava de um idiota completo.
          Eu também estava sabendo que os enfermeiros e os especialistas do Estudo do Comportamento Humano estavam esfregando as mão de contentamento e preparando suas agulhas, bisturis e pinças, felizes com aquele sorriso de avental engomado que eles têm enquanto se preparam para mais uma sessão de lobotomia. “Ele não vai escapar dessa, passe-me a broca!”, diz o Enfermeiro-Chefe calçando suas luvas de borracha. Eu sabia de tudo e tudo estava fora de foco. Era um cerco e eu não podia escapar porque não havia nenhum lugar seguro.
          E ainda existiam as manhãs de sábado. O dia da feira-livre. Minha mãe dizia: ”Vamos à feira!”, e o meu coração murchava como um tomate esmagado.
          O lugar fedia a peixe e todas as pessoas do mundo estavam ali espremidas como sardinhas em lata, numa multidão compacta, naquela passarela margeada por barracas, expostas como fraturas num desastre de trem, com os preços escritos em plaquinhas de papelão, espetadas bem no topo da cabeça, prontas para o consumo. Eu sabia, eles  iam me mastigar até eu virar um pasta de carne moída. Depois o japonês dos olhinhos de ostras congeladas, dono da carrocinha dos salgados, ia me recolher numa pazinha de plástico e me fritar no óleo quente e me vender como quibe ou recheio de pastel. Eles não me enganavam.
          Enquanto minha mãe pechinchava com a feirante gorda, de sotaque estranho e bigode de homem em cima da boca flácida, eu tentava me interessar pelos preços do mundo. Minha mãe pedia uma baciada de vagem, mais uma de batatas e um outro tanto de laranja lima e beterrabas. Mas as abelhas sobrevoando o mel ácido do abacaxi meio podre me tirava a concentração e, de repente, minha mãe não estava mais pechinchando com a feirante de bigodes e o chão havia sido forrado com cascas de banana especialmente para que eu patinasse, escorregasse e caísse de cara naquela lama de suores de donas-de-casa, merda de cachorro e restos de maçãs em estado de decomposição.
          O sol das dez horas entrava pelos olhos como gotas de limão e lá ia eu em desabalada carreira berrando o nome de minha mãe. Os feirantes já me conheciam. Eu os ouvia  gritando meu nome do mesmo jeito que eles gritavam os preços das mercadorias. A feira, em poucos segundos, se transformava naquela gritaria amplificada e os meus ouvidos eram os microfones onde todos vinham colocar a boca e soltar o  seu grito primal de “Viva o rock and roll”!
          Quando a mão pesada me agarrava pelos fundilhos da calça e me suspendia como se fosse me arremessar para dentro de uma caixa de uvas  italianas, eu começava a entender que minha mãe estava por perto e que não seria desta vez que eu seria vendido como quibe ou recheio de pastel.
          Minha mãe sorria e tentava me acalmar me comprando um sorvete de baunilha com groselha e me mandando carregar o pedaço de melancia. Aquilo pesava e minha mãe devia pensar que com os braços ocupados minha cabeça se manteria no lugar e não sairia rolando para debaixo das barracas.
          Ela não estava totalmente errada. Eu ficava com a melancia no braços até ela dizer: “Tudo bem, pode subir!”, então eu me enfiava dentro do carrinho de feira, me sentava entre as rodinhas e ficava ali esmagado como um repolho embrulhado em folhas de jornal, com a melancia pingando sua água açucarada nas minhas pernas, sentindo a cobiça das abelhas me rondando com seus ferrões e torcendo com todos os meus sentidos para que os preços não estivessem tão altos e minha mãe comprasse tudo logo e me empurrasse para fora daquele inferno hortifrutigranjeiro, que me conduzisse de volta para casa sem nenhuma parada de descanso no carrinho de pastel do maldito japonês. 

Jorge Mendes
 

 

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