Fazenda Cachoeira
Helena e eu
somos amigas e companheiras há quase um ano. Meus pais moram
no céu e os dela na fazenda, onde fomos passar as férias
de final de ano. Deixamos a cidade junto com o nascer do sol. A viagem
seria longa. Queríamos ir sem pressa por causa das possíveis
chuvas a que estaríamos sujeitas. Tomara o tempo fosse camarada,
pois temia a cegueira inexplicável que me acontecia em épocas
chuvosas com relâmpagos e trovoadas. Primeiro eu sentia um
enorme pavor. Depois vinha o pânico. Em seguida a completa
escuridão por tantas horas. Minhas vistas eram perfeitas.
Consultei vários médicos, mas nenhum deles encontrou
a causa da cegueira momentânea que eu sofria desde criança
em épocas chuvosas. Só me restava conviver com o
problema da melhor maneira possível. Por isso torcíamos por
uma viagem
tranqüila.
No início
da nossa viagem, Helena começou a me contar a história da
Fazenda Cachoeira que vem passando de pai para filho desde os tempos de
seu bisavô, o sr. Antônio. A Fazenda Cachoeira
pertencia à Belizário, o irmão mais velho do sr. Antônio.
Havia uma diferença de idade de dez anos entre eles. Belizário
nasceu do primeiro casamento do pai e Antônio do segundo. Contando
agora três gerações, a fazenda era do pai
de Helena que sempre orgulhoso falava de seus ascendentes para seus
descendentes contando detalhadamente toda a história da Fazenda
Cachoeira.
Os dois irmãos,
Belizário e Antônio, eram muito unidos embora de temperamentos
diferentes. O bisavô Antônio era falante, alegre e paquerador,
tanto que se casou cedo e logo formou família. Já Belizário
era o oposto; caladão, tinha uma paciência de Jó.
Tão calmo que só vendo. A fazenda era a sua própria
vida, tamanha era a sua dedicação. Amava os cavalos. Tinha
por eles um cuidado especial. A cachoeira era o seu recanto preferido.
Alí passava horas e horas escutando o barulho das águas.
Belizário tinha um relacionamento muito íntimo com tudo que
fazia parte da fazenda.
Um dia deram
conta de que Belizário tinha um segredo.
Tudo começou
com suas ausências misteriosas da fazenda por uns três
ou quatro dias. Ninguém perguntava nada. O bisavô Antônio
tinha lá suas desconfianças: "Uma mulher." Ele que
era grande entendedor das coisas do coração podia jurar que
seu irmão estava amando uma mulher, ora, então ele não
conhecia bem os sintomas de um coração apaixonado? Só
uma coisa o intrigava: Se seu irmão Belizário havia encontrado
o amor de uma mulher porquê agia daquela maneira? Porquê não
realizava esse amor? Qual era a razão de manter um romance em segredo?
Mas ninguém jamais ousou tocar no assunto. Respeitavam. Por fim
se acostumaram com as ausências de Belizário que em pouco
tempo passaram a ser rotineiras, mesmo quando antes eram espaçadas
e curtas e depois freqüentes e demoradas, chovendo ou fazendo sol.
E foi num desses dias de chuva braba que tudo aconteceu. Belizário
se foi e nunca mais voltou. Ele estava fora já havia três
dias. Ventava forte. A chuva caía impiedosa. Relâmpagos
cortavam os céus. Os trovões eram ensurdecedores. Sair de
casa nem pensar, tamanha era a força do vento e da água que
caía. Quando tudo se acalmou veio a notícia trazida pelo
peão da fazenda vizinha: "A chuva fizera grandes estragos na redondeza,
acharam o cavalo de Belizário muito ferido na beira da estrada e
a charrete quebrada. Mas Belizário ninguém viu. Nenhuma notícia."
O mundo girou
em volta do bisavô Antônio. Pela primeira vez ele provava o
gosto amargo da dor. A dor da perda do velho e querido irmão. Desesperado
reuniu os peões da fazenda e saíram em busca de Belizário.
Ainda que fosse preciso moveria céus e terras, mas Belizário
seria encontrado. Não tornaria à fazenda antes de fazê-lo.
Ao fim de dois
dias de busca intensa, não muito longe dali, acharam Belizário
debaixo de uma velha cabana que desabou com o peso da chuva. Seu corpo
sem vida estava desfigurado. Junto a ele um corpo de mulher. Aparentemente
bem jovem.
O bisavô
Antônio jamais aceitou a morte trágica de seu irmão,
por isso desde então, seu propósito foi mantê-lo vivo
na memória e no coração de seus descendentes à
cada nova geração. Segundo ele "A memória de Belizário
e
a Fazenda Cachoeira permanecerá entre os seus descendentes
para todo o sempre."
Quando Helena
terminou de me contar, já entrávamos nas terras das propriedades
de seu pai. Sentia-me envolta de grande emoção.
Fomos recebidas
em clima festivo por seus familiares. Mais tarde um belíssimo
e farto jantar reuniu à mesa todos os descendentes do sr. Antônio.
Pude então testemunhar a união e o amor imenso que perpetuava
entre eles, analisei por fim, o grande homem que foi o sr. Belizário.
Ele não havia deixado somente a fazenda de herança, deixou
também o amor, a união e o respeito. Belizário realmente
tinha sido um homem muito especial.
Mergulhada cada
vez mais no brilho da doce beleza do lugar, eu respirava vida. Era
prazeroso o simples ato de caminhar pelo campo. Sentada nas pedras junto
à cachoeira tudo a minha volta desaparecia. Eu só ouvia o
barulho das águas deslizando incessantemente como uma doce balada
a acariciar minh'alma. Me entregava inteiramente à eternidade daqueles
momentos de encanto e pura magia de sonhar, partilhando com Belizário
em sua presença quase palpável a todo instante a meu lado.
Sua presença me envolvia de proteção e paz.
Certa vez ,
quis me aventurar num passeio à cavalo. Inácio, o irmão
mais velho de Helena, se prontificou a me acompanhar, porque sabia que
eu não estava acostumada à montar. Percebi então a
ausência de Belizário. Não pude vê-lo em nenhum
momento durante o passeio. Embora Inácio fosse uma companhia agradável,
gentil e de poucas falas, preferi voltar aos meus passeios à pé
pelos campos e ouvir o som da cachoeira, pois já havia me acostumado
com a presença viva de Belizário e a cada dia queria
senti-la mais e mais. Isso se tornou vital para mim, tanto que já
não bastava apenas ouvir o som da cachoeira, queria
agora o contato da água direto na minha pele.
Primeiro desci
das pedras, depois molhei meus pés, daí então aproximei-me
da queda d'água e fui entrando devagar, inteira, até fundir
corpo e água numa deliciosa mistura da eternidade da vida. Ali pude
senti-la
em total plenitude até ouvir uma voz ao longe a chamar meu nome:
Fátima!
Fátima!
Abri meus olhos
e lá no alto das pedras o vulto de Belizário se figurou.
Belizário!
Vem
Vem pra mim!
No mesmo instante
tudo enegreceu a minha volta. Cega e indefesa, o barulho das águas
se agigantou. O desespero tomou conta de mim. " Belizário!
Belizário!" Era tudo que eu sabia dizer.
Fátima,
estou aqui. Dá-me tua mão.
Belizário?!
Sou eu, Inácio.
Vem comigo.
Inácio
então me envolveu num longo e protetor abraço até
me acalmar. Depois me conduziu devagar e silencioso de volta às
pedras onde sentei-me querendo entender o que havia acontecido, pois eu
já não sabia mais o que era de fato real, mesmo quando tudo
foi clareando à minha volta e encontrei o rosto de Inácio
que se sentava ao meu lado. Nos olhamos longamente. Ele então disse:
A luz do teu
olhar me atrai
para perto de você!
Fechei de leve
os olhos e tornei a abri-los.
Voltamos à
casa silenciosos.
Eu já
não era mais a mesma e todos já haviam notado, por isso Helena
achou melhor apressar nossa volta. Pediu a Inácio para que
viesse passar uns dias conosco na cidade, pois meu estado exigia
atenção e cuidado. Em casa tudo me era estranho. Eu havia
perdido a noção do tempo e já não reconhecia
mais nada. Me mantinha distante, longe de mim mesma. Lembrava da
fazenda como se fora a muitos e muitos anos. Num tempo em que eu
já não podia mais alcançar. Eu não era
eu. Chorava e chorava permitindo que a depressão
me consumisse. Helena então foi buscar a ajuda de um psicólogo.
As primeiras
sessões da terapia foram dispendiosas até que tudo começou
a fazer sentido. Inácio voltou à fazenda e com o apoio
de Helena aos poucos fui retomando a vida de antes. Quando Dr. Carlos
sentiu que eu estava preparada marcou a primeira regressão.
Helena quis assistir e eu não me opus. Dr. Carlos me fez relaxar
profundamente e me conduziu a uma praia de areia branca. À
minha frente via-se um oceano azul profundo. Eu estava de pé
nas areias do tempo que se estendiam indefinidamente. À minha
esquerda elas seguiam para o futuro. À minha direita as areias
levavam ao passado.
Entretanto eu
nada podia ver por causa da camada de neblina que encobria
a praia. Comecei então a caminhar em direção
ao meu passado. No meio da neblina estava fresquinho e confortável
por isso me detive por alguns momentos dentro dela. Voltei a andar.
Aos poucos a camada de neblina foi se dissolvendo.
Quando ela desapareceu
por completo eu me encontrei num outro tempo, numa época distante.
Podia ainda ouvir a voz de Dr. Carlos e seguir suas instruções.
Ele me fazia perguntas as quais eu respondia baseada nas imagens que me
eram nitidamente aclaradas na memória. Era como se eu estivesse
no cinema assistindo a um filme.
Eu me vi no
interior de uma cabana. Meu nome era Felícia. Tinha vinte e dois
anos de idade. Eu era cega, mas podia realizar certos afazeres da casa.
Vivia eu e minha mãe. Ela estava acamada. Eu a cuidava.
Entardecia e eu esperava por alguém que nos visitava regularmente
já fazia algum tempo. Esse alguém se chamava Belizário.
Nos amávamos. Quando o estado de saúde de minha
mãe se agravou ele vinha com mais freqüência e se demorava
conosco. Belizário quis casar-se comigo. Queria levar a mim e a
minha mãe para viver na Fazenda Cachoeira . Pedi-lhe um tempo
para pensar. Eu o amava mas tinha medo. Pensava na diferença
de idade que havia entre nós. Ele era bem mais velho do que
eu, fazendeiro. Eu apenas uma moça pobre e cega a cuidar da
mãe doente, vivendo da caridade alheia. Temia aquela união.
Belizário
era calmo e paciente. Sua dedicação à mim e à
minha mãe era cada vez maior. Até que um dia minha
mãe dormiu num sono eterno e me deixou sozinha no mundo. Foi
então que aceitei casar-me com Belizário e ir viver com
ele na fazenda. Pude sentir a alegria que o envolveu naquele momento. Ele
acariciou-me a face e disse: "Felícia, o brilho dos teus olhos inunda
o meu viver duma alegria infinita que só o tempo pode
apagar."
Assim peguei
algumas coisas de uso pessoal e deixei a cabana para ir viver na
Fazenda Cachoeira. O tempo ameaçava chover, mas Belizário
não se importou. Tinha pressa de chegar e fazer saber à
todos do nosso amor e da nossa união. Se fosse preciso nos
abrigaríamos numa cabana abandonada que ele conhecia no caminho
da fazenda. Chegaríamos bem, confiava em seu cavalo, o bom
companheiro de sempre. Mas ao longo de algumas horas a chuva caiu impiedosa
dificultando a viagem. Seu cavalo à custo puxava a charrete.
A cabana da qual falou estava próxima por isso achamos melhor
parar e poupar seu cavalo. Nos protegíamos por entre as árvores
seguindo à pé. Com muito esforço alcançamos
o abrigo. Porém a cabana não suportou a força
do vento e desabou sobre nós, permitindo que as águas
levassem consigo a realização do nosso amor.
Após
a sessão que nos trouxe importantes revelações Helena
e eu nos abraçamos emocionadas. Meu tratamento continuou pois
Felícia ainda era presença viva em meu íntimo,
confundindo a minha personalidade e isso teria de ser trabalhado.
Não foi
fácil mas segui à risca as orientações de Dr.
Carlos. A princípio sentia uma imensa saudade de Belizário,
mas aos poucos ela foi se transformando numa doce lembrança e se
distanciando a cada dia até perder a nitidez e situar-se num passado
longínquo.
Cuidei para
que Helena nada dissesse à sua família sobre aqueles
esclarecimentos. Eu estava recuperada e isso bastava. Se Belizário
não teve tempo para revelar-me, assim deveria permanecer; em segredo.
Os dias passaram
e tudo voltou ao normal. Recebi alta e respirei aliviada.
Na volta do
consultório uma surpresa me aguardava. Inácio. Ao vê-lo
meu coração disparou de alegria. Seus braços
se abriram para mim e eu me deixei envolver por inteira naquele longo
e protetor abraço que eu já conhecia.
Estava ansioso
por vê-la.
Eu estou pronta
para voltar à fazenda.
Vim te buscar.
Todos te esperam.
Rimos felizes.
"Fátima,
o brilho dos teus olhos inunda o meu viver duma alegria infinita
que nem mesmo o tempo pode apagar."
Emocionada deixei
escapulir uma lágrima no canto dos olhos. Esse segredo carregaria
comigo para todo o sempre. Não existia mais dúvidas, Belizário
estava de volta ao meu lado como Inácio e desta vez chegaríamos
à Fazenda Cachoeira sem que nenhuma tempestade nos roubasse
o futuro vindouro.
Lia Silva
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