Não se sabe quando
o homem descobriu que tem um cérebro alojado na cabeça, Talvez
isso tenha acontecido quando da primeira rachadura exposta à qual
algum primata tenha se submetido, exatamente ao cair de uma gigantesca
pedra ou sendo esmagado pela patas de um dinossauro, Então um outro
primata deve ter observado aqueles miolos espalhados pelo chão,
Talvez sem entender e com fome, tenha provado alguns miolos e até
gostado do sabor.
O cérebro é m companheiro inseparável, Ele é
capaz de prodígios e tragédias, o cérebro nos lembra
de que temos cabeça e que ela dói de quando em quando, É
importante saber que o cérebro é a máquina mais perfeita
do universo, depois da máquina de refrigerantes em shoppings e do
molden para ligações à distância, De qualquer
forma, o cérebro foi uma máquina inteligente, criada para
armazenar informações, sensações, emoções,
distrações, e outras coisas inúteis, como a fome,
a dor, a ganância, o desespero, o sofrimento e a inveja, Mesmo assim,
o cérebro nos lembra quando é hora de comer, dormir, mijar,
cagar, lembra-nos das obrigações e nos faz esquecer aquilo
que nos incomoda muito, O cérebro nem sempre é um companheiro
fiel, ele pode trair, pode nos deixar em maus lençóis, pode,
enfim, destruir com vidas humanas.
Esse aparelho tão
sofisticado é capaz de elucubrações, estratagemas,
o cérebro pensa e mente, é através de mecanismos muito
sofisticados que o cérebro nos programa para fingirmos o que não
somos, aliás, as artimanhas da dissimulação estão
perfeitamente programadas no cérebro humano.
Os instintos, os desejos,
qualquer coisa, como a percepção e o tesão, está
tudo ali, no cérebro humano, Hoje, com os avanços da ciência
e tecnologia, o homem viaja sem sair de casa, fala com os amigos, desfruta
de inúmeros benefícios modernos, constróis máquinas
e manda recados pornográficos para amigos e parentes através
da Internet, escreve bobagens e vota sempre nos piores, e depois reclama
como um cínico e o seu cérebro está escondido, nem
ruborizado ele fica.
Pantófio é
um ser humano que tem cérebro, É evidente que ele teria cérebro,
Mas o que faria alguém pensar que Pantófio não teria
um cérebro, O consolo de Pantófio é que tem apenas
um cérebro, como todos os outros seres humanos, burros ou não,
O fato é que Pantófio é um bípede, um amigo
de longa data, uma pessoa qualquer, esparramada pelo mundo, como alguém
comum, assim como eu e você, como seu pai, sua mãe, sua avó
e o cérebro dela, Você pode imaginar bilhões de cérebros
pensando ao mesmo tempo? Não? Não consegue? Pois eu também
não, mas não custa imaginar cérebros em contato.
Dizem que um cérebro
tem muita energia e que é capaz de fazer as coisas se moverem de
um lado para outro, é capaz de materializar coisas e de fazer sumir
coisas, Dizem mesmo que o cérebro é órgão,
o cérebro humano é o maior da natureza, os outros animais,
dizem, têm cérebros menores, mas os têm.
Pantófio é
um desses cretinos fundamentais, talvez uma criatura pesquisada em laboratório,
uma pessoa comum, semelhante a milhões de cretinos que perambulam
pela Internet, como eu, seus amigos, nossos amigos, os amigos e parentes
de todos, E esse amigo chamado Pantófio é um amigo mediano,
com cérebro de ostra, tentando ser feliz neste mundo de circuitos
e eletrodos conectados a ondas eletromagnéticas que sobrevoam a
nossa cabeça e o nosso cérebro, Pantófio não
sabe bem o que deseja da vida, é um homem casado, com filhos, tendo
chegado aos 45 anos, um consumidor padrão, consome de tudo e sente
falta quando não consome, A tragédia é que um cretino
como ele tem amigos, tem um bom emprego e consegue sustentar os desejos
depressivos da esposa, Além do mais, é um classe média
exemplar, indiferente a tudo e a todos, um papagaio em potencial, repete
o que os outros dizem, tem frases prontas para cada pensamento filosófico,
conhece como ninguém a biela do seu e do nosso carro, Pantófi!
o existe, por isso ele pensa.
Como todo bom Pantófio,
o Pantófio meu amigo delicia-se com a Internet, passa horas pesquisando
coisas exóticas, modismos, novas seitas, bate papo com pessoas estranhas
e extravagantes, consome quilos de salsicha à frente do computador
e não deixa os filhos usarem a Internet na sua ausência.
Pantófio tinha uma
ligeira desconfiança de que possuía um cérebro, talvez
não soubesse exatamente a sua posição no corpo, contudo,
tinha a sensação constante de carregar uma massa encefálica,
ligeiramente acima da testa, mas não sabia bem como explicá-la,
Mesmo assim, seus filhos e sobrinhos já tinham aprendido para que
serve um cérebro, de qualquer forma, também não o
utilizavam em profusão, preferiam mantê-lo inerte, assim como
o Pantófio, Mas Pantófio é um ser curioso, e como
a curiosidade havia matado o gato, e não me perguntem de quem, o
fato é que Pantófio um dia encontrou uma página na
Internet que falava sobre meditação e sobre filosofia hindu,
Resolveu pesquisar e ficou fascinado, A cada descoberta uma emoção,
Lá dizia que o pensamento é o instrumento mais poderoso da
fragmentação humana e que para encontrar a felicidade e o
absoluto, ou seja, a VERDADE, era necessário anular o pensamento,
esvaziar-se por completo, deixar-se levar pela percepção.
Pantófio não
poderia jamais imaginar algo que pudesse trazer à baila a sensação
exata da nulidade do pensamento, Agora, mais do que nunca, Pantófio
estava convencido de que o cérebro não tinha qualquer serventia,
Resolveu destrui-lo, resolveu que era hora de negar o seu cérebro,
Era chegado o momento de dizer um basta àquele órgão
que ele, intuitivamente, apenas imaginava onde se situava, Achou que poderia
viver sem o cérebro, esquecendo-se de todos os benefícios
que ele lhe havia propiciado ao longo da sua existência, Mas na prática,
seu cérebro não foi um instrumento eficaz na sua vida cotidiana.
Os hindus são mestres
na meditação, Mas Pantófio, meu amigo cretino e fundamental,
não imaginava o que seria uma meditação, achava que
meditação era um sono profundo sem sonhos e que a mente vagaria
como uma pluma para qualquer direção, sem direção,
Contudo, Pantófio não sabia bem do que se tratava, queria,
mesmo, era dar um sumiço em seu cérebro, achando que ele
estava cansado e sem forças para continuar, Procurou seu médico
amigo, pediu que extirpasse o cérebro, O amigo, ditoso e venturoso
agradeceu a lembrança mas disse que não poderia fazê-lo
por motivos de ordem técnica e não ética, já
que, intimamente, considerava um bem à humanidade extirpar o cérebro
de Pantófio, não adiantou, nada poderia demovê-lo da
idéia de tirar o cérebro, dar um fim naquela massa cinzenta,
Falou com o irmão, Pontifício, mas Pontifício não
entendeu, já que lhe faltava 15% do cérebro, exatamente aquela
região da sensibilidade e da inteligência, coisas de criança,
vocês sabem do que estou falando, !
aquelas brincadeiras de limpeza de fossa, Pontifício quis experimentar
um limpa fossa, já que alguém havia dito a ele que seu cérebro
continha muita merda, entupindo os canais da inteligência, Conclusão:
uma dose generosa de limpa fossa, uma ácido para matar vermes e
ratos e lá se foram 15% de massa, Dessa forma, Pontifício
não tinha condições de entender as intenções
de Pantófio, Este, por sua vez, resolveu procurar um médico
praticante de abortos, clandestinos, evidentemente, Pensou que assim não
teria problemas com o fisco, já que havia uma lei que determinava
uma taxa adicional para quem fizesse uso das suas faculdades mentais para
acabar, justamente, com elas, E foi aí que Pantófio viu-se
na sala de espera de um papa-anjos famoso da Zona Leste de São Paulo,
Foi atendido com presteza mas com a desconfiança de sempre, A enfermeira
quis saber o motivo, achou que sua filha estaria disposta a cometer mais
uma barbaridade entre tantas cometidas naquele dia, Mas não, ele
disse, !
Que fazer um aborto cerebral! Aborto cerebral? É uma brincadeira,
uma pegadinha de alguém da TV? Não, é um aborto cerebral,
não estou mais interessado em continuar com o meu cérebro,
O senhor quer um outro cérebro? Perguntou a enfermeira de plantão,
retrucando, Mas se desejar um, não temos pronta-entrega, vai precisar
esperar algum tempo, Doadores de cérebro não aparecem assim
tão facilmente, Eu quero apenas me desfazer do meu, é possível?
Claro, um tiro na testa e tudo está resolvido, não assim
eu não quero, prefiro uma operação, com tudo o que
eu tenho direito, perguntou a enfermeira chefe, E sua família já
sabe? Claro, todos lá em casa aprovam, Sucinta e desconfiada disse,
Não temos vagas para os próximos 6 meses, voltes daqui a
sete, é possível? Bem, não, não estou com tanta
pressa...
Voltando para casa, Pantófio
pensava, mas queria deixar de pensar, pelo menos por um instante, queria
fazer como os hindus, apenas existir, sem cérebro, o que o deixaria
mais leve, pelo manos alguns gramas a menos, porém ainda não
tinha conseguido seu intento, Ao chegar em casa, resolveu tomar formicida,
Não adiantou, desceu-lhe uma diarréia atômica, potencialmente
medonha e que entupiu o vaso sanitário, Resolveu por formol, tomou
2 litros e nada, Engoliu 134 barbitúricos e apenas adormeceu por
algumas horas, Voltou ao trabalho e no corredor de acesso bateu a cabeça
tantas vezes que o prédio balançou razoavelmente, mas dada
fazia efeito.
Contudo, seu cérebro
estava ficando cansado de tanta violência, decidiu agir e paralisou
Pantófio, foi um alerta, uma greve de advertência, Paralisado,
o coitado e cretino Pantófio não poderia fazer nada, não
poderia mover os dedos, as mãos, os pés, a boca, o martelo
e o pênis, Paralisado, tudo ficaria imóvel e a salvo das ondas
de terrorismo contra o seu próprio cérebro, Alguns parentes
pensaram tratar-se de um choque anafilático, mas qual o quê,
nada, era paralisia pura, nada saía, nada entrava, era um muro da
China intransponível, um fosso entre o seu vazio cretino e o universo
todo que clamava contra aquela violência pérfida, Como poderia
ele acabar com o próprio Cérebro? Mas este, heroicamente
decidiu reagir e tomou uma providência providencial, resolveu cortar
as ligações, como um sistema que entra em pane e que resolve
tudo cortando as comunicações para que a central não
seja atingida.
Vejam o que a Internet é
capaz de fazer.
Após dois dias de
catatonice total, o cérebro mandou algumas mensagens a Pantófio,
mas ele estava paralisado e quando ouviu seu cérebro emitindo sinais
falados, pensou que fosse um anjo do céu, pensou mesmo que estava
em transe, e que o Nirvana, enfim, tinha sido atingido, Ele, o homem mais
burro da humanidade estava prestes a fazer parte de um grupo muito seleto,
o Grupo dos Iluminados, Mas o cérebro, também um tanto vesgo,
não entendia a euforia de Pantófio, e assim, a linguagem
pareceu truncada, e era de fato, muito truncada e dolorosa, De um lado,
um cérebro estafado e moribundo, com manchas pela superfície
e com o desespero de quem está prestes a ser degolado e de outro,
um burro cretino pensando estar no Nirvana só porque ouviu vozes
que vinham do seu cérebro.
Nós os ocidentais
não sabemos bem o que fazer com o pensamento, que acumula conhecimentos,
experiências, culturas, tradições, dogmas, fetiches,
hambúrgueres, batatas fritas e refrigerantes, Por um lado, somos
espertos em criar tecnologias sofisticadas e inteligentes, mas que promovem
a pobreza e a exclusão, de outro, um mundo de coisas belas como
o cinema, a música, a pintura moderna, São coisas magníficas
e, no entanto, dolorosas, pois toda nossa experiência será
sempre limitada, fragmentada, dividida para proteger um eu inexistente
e que cria suas regras de proteção, acumulando ou destruindo,
Mas Pantófio não entendia assim, como poderia entender? Jamais
saberia, E seu cérebro, também apenas reagia ao que lhe parecia
uma agressão fatal, Um cérebro sabe, bem lá no fundo,
do que precisa para viver - SANGUE E OXIGÊNIO, Pantófio, um
ser cretino e burro agora imaginava-se em Xangrilá, um lugar sagrado
e isolado do mundo, Os orientais, por seu turno, adoram multiplicar-se
como fo!
rmigas, estão sempre meditando, estão sempre produzindo
levitações, andam no meio de cobras e lagartos, têm
uma filosofia interessante, mas são explorados pelos ocidentais,
nós, ou melhor, os ocidentais acima de nossa cabeça.
Que ironia do destino, Pantófio
e seu cérebro, travando uma batalha mortal.
Parece que nada foi capaz
de diluir o cérebro de Pantófio, Formicidas, Formol, Ácidos,
Cocaína, Pancadas, Nada, Nada mesmo, E o cérebro não
conseguia transmitir qualquer mensagem audível ou perceptível,
tudo parecia um diálogo de surdos-mudos, um diálogo entre
o algoz e sua preza, Pantófio, um homem casado, um homem com três
filhos, todos cretinos e muito bem encaminhados na vida, consumidores autênticos,
profundamente engajados no consumo moderno, com todas as virtudes necessárias
para serem taxados de alienados, Mas sempre foram alienados com muita dignidade,
Sim, a dignidade dos alienados, dos burros que têm orgulho de sua
burrice, Era comovente ver aquela família às voltas com um
problema insolúvel, redondamente condensado, um problema fatídico
para sua existência humana e burra, o problema de PANTÓFIO
E SEU CÉREBRO....
Mas é preciso decidir
o desfecho, qual poderia ser o final dessa história? Se fosse com
você, com seu primo ou com seu avô que beira os 90, o que faria?
Uma internação? Um choque elétrico, Um livro, Uma
viagem à Índia, uma viagem ao centro de produção
de Cocaína, Um transplante cerebral, Um aborto cerebral, Um transe
induzido?
Pantófio viu-se obrigado
a conviver com seu cérebro e seu cérebro obrigado a tolerar
aquele corpo, Não havia possibilidade de diálogo nem a mínima
condição de conciliação razoável, A
vida de ambos correu paralela, sem que eles ao menos se tocassem, tivessem
um encontro em alguma praça arborizada, com pipocas e coreto, Não,
eles criaram uma indiferença patológica tão profunda
que não haveria meio de reversão, A família tentou
a reconciliação, tentou um encontro no Motel, tentou levá-los
a uma igreja pentecostal, procurou psicanalistas, mas nada adiantou, Os
dois estavam irredutíveis, Morreriam assim, Mal sabia Pantófio
que ao comer nutria, por tabela, seu indigesto cérebro, e ele, ao
pensar de forma independente, não imaginava que estava pensando
por ele, para ele e com ele, Essa dissociação era tão
burra quanto os dois.
Aos poucos a vida foi retornando
ao seu normal, lentamente a família conformava-se com tudo aquilo
e a pensão de Pantófio, até retornar ao trabalho,
era razoável, Mas a família resolveu fazer um seguro para
ambos - Pantófio e cérebro, Funcionou, o acordo celebrado
na mesa da corretora dizia que se um desse cabo do outro, a vítima
teria direito à indenização e em caso de impossibilidade
de recebê-la a família ficaria com a parte dos dois, Óbvio,
nada mais inteligente para os herdeiros, afinal era uma bolada de R$ 5
milhões, Mas como um cérebro e um corpo tão perfeitamente
burro poderiam valer tanto? Simples, a ciência havia, enfim, encontrado
os espécimes perfeitos para seus estudos...
E assim, ambos toleraram-se
até que viveram para sempre, e a humanidade até hoje não
sabe o fim dessa porcaria de história.
Mas como é que alguém
como eu poderia inventar uma estultice dessa? Como pude, eu, criar um conto
onde um burro descobre a filosofia hindu e quer, a partir daí, desfazer-se
de seu cérebro e o pior, seu cérebro reage e deixa o cretino
em nocaute, mas é uma besteira atrás da outra.
Não importa, é
para mostrar o que somos.