Ouvia a brisa
gelada fazer sons estranhos nos becos, entre as casas antigas. Costumava
chamar aquele som etéreo, poético de “O Canto da Noite” quando
era mais novo. Quanto tempo ele morou ali? Não lembrava ao certo...
Uns cinco, dez anos? Deitou-se e pôs as mãos atrás
da cabeça. Lembrou do quanto gostava de subir naquele telhado bem
tarde da noite, observar o céu, o silêncio cortado apenas
pelos sons do vento, sentir o sereno frio na pele... Quando deu por si,
já estava subindo as escadas. Lá em cima de novo, tanto tempo
depois... E... O que tinha de errado? Já não era a mesma
coisa...
Lembrou do que
ele sempre pensava quando subia ali: “Tudo pode mudar, mas sempre haverá
estrelas no céu.” Mas ele nunca imaginou tanta mudança em
sua vida. Que voltaria ali adulto, e não mais ouviria o canto de
sua mãe ecoar pelas paredes agora descascadas da velha casa. Uma
lágrima escorreu pela face, mas ele não teve ânimo
pra secá-la. Deixou-a correr até a boca e sentiu seu gosto
salgado. Jamais pensou que teria que vender aquela casa, outrora tão
cheia de vida, agora tão vazia. Que saudades da época mágica
da infância... Das brincadeiras de esconder com seu avô no
quintal, da paz na sua casa na árvore, do beija-flor que vinha beber
a água com açúcar que ele pendurava na goiabeira...
Foi a melhor época de sua vida. Duvidou que algum dia fosse tão
feliz de novo.
Viu um meteoro
e lembrou dos versos que fazia, já adolescente. Falava sempre do
céu... Adorava os ares noturnos. Muitos versos ele fez para conquistar
sua esposa. Ela não ligava muito pra poemas, mas gostava. E sempre
agradecia com um beijo. Um singelo sorriso cortou a tristeza. Mas por pouco
tempo... Lembrou que os anos de convivência deles juntos não
deram certo. Não conseguiam ter os filhos que ela sempre quis, mas
isso não foi o pior. Os dois erraram, e o amor foi se transformando
num veneno. Raiva, ciúmes, vingança... Maldito seja o tempo...
Seria ele o culpado? Estavam enjoando um do outro? Os dois sabiam que estavam
a um passo do divórcio. Ele lembrou da sua teoria das estrelas e
pensou que ela estava incompleta: “Tudo pode mudar pra pior, mas sempre
haverá estrelas no céu.”
Aquela era uma
noite sem lua. Ele adorava noites sem lua. As estrelas pareciam brilhar
mais. Sentou-se no telhado. Dali ele via quase toda a rua... Todas as casas
antigas, os jardins maltratados, os terreno baldios. Não era assim
antigamente. Pelo menos o lugar sagrado onde se passa a infância
devia ser proibido de mudar. Já não passava ninguém
àquela hora. As ruas cheias de crianças jogando bola e soltando
pipa agora estavam sem viva alma. Nem os velhinhos varrendo as folhas das
calçadas e fazendo fogueiras, enfumaçando as casas vizinhas,
apareciam àquela hora. Só alguns cães de rua ainda
estavam acordados, vagando soberanos no silêncio quase total... E
um gato miava distante, como o choro de um bebê faminto. Então
sentiu as telhas sob ele estalarem... Viu que estavam molhadas com o orvalho,
e ele já não era mais tão leve quanto nos velhos tempos
de vigílias noturnas. Sentiu o jato de adrenalina invadir suas veias.
Mais estalos... Qualquer movimento agora e ele afundaria no telhado. O
que fazer? Só faltava essa... Um morcego passou bem perto. Mas ele
nem se moveu. Achou que se deitasse de novo o peso se espalharia melhor
e ele poderia ir rolando até a escada por onde subiu. As telhas
cederam e os planos dele foram interrompidos pelo tombo.
Na laje empoeirada,
sentiu uma dor imensa na perna. Não dava pra ver o que era, então
procurou com as mãos. Sentiu o calor do seu sangue e que tinha algo
cravado, atravessado na sua coxa direita. Estava quase desmaiando... Mas
se isso acontecesse, ia sangrar até a morte. Que final idiota! Gritou
por socorro e lembrou que ia ser muito difícil alguém ouvir.
A única casa mais próxima que não estava abandonada
era a da dona Amélia, que já era mais surda do que uma porta
quando ele era um menino! Mas ele continuou gritando. Era a única
coisa que podia fazer mesmo... E, por mais que se esteja reclamando da
vida, nessas horas todos nós tiramos forças de não
sei onde para continuar... Nessas horas, a vida se torna o bem mais precioso
imaginável. Todas as preocupações e problemas parecem
menores. O pânico começava a dominá-lo. A sensação
era a mesma que ele tinha quando criança, no escuro do quarto, acordava
apavorado após um pesadelo e via faces medonhas nas paredes. Sentia
aquele suor gelado pelo corpo, mas, mesmo assim, se cobria com o lençol
para se proteger. O coração batia tão forte que parecia
estar no seu pescoço. E ele, sem agüentar mais, gritava pela
ajuda paterna. Queria gritar de novo, mas seu corpo não respondia.
Olhava através das telhas quebradas para a casa vizinha com esperança.
Sentiu que ia desmaiar. Seus sentidos quase se apagavam e voltavam. Viu
uma luz se acender na casa da velha surda e alguém pequeno aparecer
na janela. Alucinação? Foi seu último pensamento.
Só acordou,
todo enfaixado, sendo levado pra uma ambulância. Procurou por seu
salvador e viu, na porta da casa da dona Amélia, uma moça
bonita, abraçada com uma garotinha, acenando. Vai ver a velhinha
tinha morrido ou se mudado... Se mudado... Se não fossem as mudanças
das quais ele sempre reclamava, ninguém ouviria seus gritos. Que
alívio... Sentiu vontade de rir e de sentir o abraço de sua
esposa de novo. Com certeza, ela o visitaria no hospital. Talvez ainda
houvesse uma chance para eles.