ANNA LOUCA
 
        Foi abacate. Foi cor de abacate, ou melhor, foi verde-abacate o  tecido que ela escolhera naquele dia. O vendedor, antes de definir o corte, ainda  lhe perguntou se tinha certeza que ela queria levar o tecido daquela cor. Ele já  estava acostumado em vê-la comprar tecidos pretos, depois roxos e, passado  um certo tempo, cinzas... Ainda mais uma vez, antes de cortar o tecido, ele  perguntou se ela não preferia levar o mesmo em cor branca ou azul, cores mais suaves. Ela lhe respondeu com firmeza e segurança que era mesmo o verde-abacate que ela queria. Assim foi feito.
 
        Com o corte de tecido na sacola de macramê ela foi direta a uma costureira de um bairro distante. Não queria ir à mesma costureira, freguesa  de  muitos anos — esta conhecia muitas amigas e quase toda a família — poderia dar com a língua nos dentes e o vestido de cor verde-abacate deveria ser um segredo guardado com sete chaves. Ninguém podia saber.
 
        Finalmente, depois de muitas provas e modificações no modelo escolhido, o vestido ficou pronto. No caminho de volta à casa, ela ainda passou na igreja para meditar na sua determinada resolução de se livrar do luto.
 
        Já se passara dez anos que perdera o Schultz, assim chamava o marido pelo sobrenome, nunca se acostumou a chamá-lo pelo primeiro nome. Ficara viúva aos 46 anos, ainda nova, diziam muitos, e não mais quis saber de ninguém em sua cama. Se recolhera em si mesma, se trancou em sua casca e se entregou de corpo e alma à viuvez precoce. A solidão começou mesmo quando os filhos, já criados, foram se casando um por um. Assim se viu sozinha em uma casa enorme com quatro quartos para guardar todas as lembranças e todos os fantasmas. Durante todo esse tempo se vestiu de preto e muito raro, ultimamente, colocava um ou outro vestido de cor cinza ou roxa em esparsas ocasiões de festas.
 
        De repente aquele desejo, aquela vontade de se vestir de outra cor... e logo de verde-abacate!... Não quis pensar mais: estava resolvida e foi pra casa cumprir o seu intento.
 
        À noite, como todas as noites dos últimos anos, jantou sozinha. Sentou por algumas horas na varanda e admirou a lua cheia, dançando nuinha em um céu escuro e limpo. Se permitiu ao prazer de tomar uma taça de vinho tinto quando já era bem tarde e sabia que ninguém mais haveria de procurá-la. Sentiu um rubor pela face e relembrou todo o excitamento da sua juventude. Quis recordar o Schultz e foi até o quarto. Revirou o álbum de fotografias, olhou o armário com seus ternos ainda ali pendurados... Voltou sem pressa à varanda várias vezes e olhou a lua cada vez mais bela e mais brilhante. Reviveu em curto tempo toda sua vida: o casamento, a lua-de-mel, a construção da casa, a primeira gravidez, o segundo filho, o terceiro parto, as formaturas e os casamentos de Joanna, José Luiz e Renata, o primeiro neto, os outros depois, a morte de Schultz e finalmente os fantasmas e a solidão que lhe acompanhavam. Sentiu vontade de tomar mais meia taça de vinho. O fez com um prazer há muito não aproveitado. Foi até o guarda-roupas e olhou o vestido verde-abacate destoando com o resto dos outros vestidos. Viu no relógio da parede que passava das onze horas. Pensou em nada por alguns instantes até tomar a resolução definitiva.
 
        Já dentro do vestido novo se mirou no espelho. Sentiu que o mesmo ficou um tanto justo nos quadris, todavia aprovou o apelo sexy. Ajeitou os cabelos, soltou leves gotas de perfume no pescoço e no decote benevolente. Andou  vagamente pelo quarto e foi até a escrivaninha somente para lembrar um pouco mais do falecido. Era ali que ele passava horas de noites insones apertando aquelas teclas brancas do  computador, clicando o ratinho que ela nunca se importou em aprender a operar. Aquele canto da casa era tão caro que ela nunca se dera ao trabalho de cancelar a assinatura que o Schultz tinha na internet: pagou todo esse tempo sem nunca utilizá-la. Decidiu ligar o computador e sentiu o cheiro do amado, viu a imagem do único amor da sua vida iluminada pela luz da telinha. Apertou mais ainda no coração a ausência do falecido. Quis chorar e se conteve. Querendo matar todas as faltas e saudades, resolveu clicar aleatoriamente o ratinho sem saber para onde estava navegando. Viu que a telinha lhe oferecia opções e continuou clicando com desmando até que parou numa página: “NO ESCURINHO - SALA VIRTUAL 2”. Encontrou um campo vazio que requisitava um nome. Tentou digitar o próprio nome — Hidelgardes —, contudo todas as letras não couberam no quadradinho. Apagou, digitou então ANNA e, pensando na sua loucura, completou: LOUCA.
 
        Viu aparecer imediata e seguidamente:
 
        Anna Louca entra na sala
        Man (fala com Anna Louca) — Quero descobrir suas loucuras
        Gato (fala com Anna Louca) — oi... quer transar pelo tel.?
        DUDUGOSTOSO (fala com Anna Louca) — de onde teclas? é uma louca gostosona?
        Anônimo (fala reservadamente com Anna Louca) — Oi gatinha, vc quer que eu apague seu fogo? ou vc prefere que eu acenda?
        Miro (fala com Anna Louca) — ...muito louquinha?
        REIRICARDO (fala reservadamente com Anna Louca) — oi, doidinha, quer conhecer um rei?
        Bomd (fala com Anna Louca) — Porque louca?
        Anderson (fala reservadamente com Anna Louca) — Quer um pouco de carinho, eu sou sincero e tudo que falo é verdade, não sei mentir. Teclo de Brasília e gostei do seu nick...
 
        Hidelgardes se afastou do computador assustada com o coração batendo forte querendo lhe sair pela boca. Foi até ao espelho imediatamente. Corada, se viu melhor dentro do vestido verde-abacate e reparou que era uma mulher que ainda despertava desejos nos homens mesmo sem ser vista ou vê-los. Viu que podia desfrutar desta intimidade só sua... Respirou fundo, tomou mais um pouco do vinho,  voltou para a escrivaninha e respondeu ao Anderson.
 
        Assim descobriu  uma outra forma de amar. Teve finalmente um amante em sua vida com quem trocava palavras de carinho, momentos de felicidades e gozos nunca dantes imaginados. Entre um e outro orgasmo marcou novos encontros com Anderson.  Daí em diante, sempre seguindo o ritual de usar o vestido verde-abacate,  encontrava-se com o jovem apaixonado nas salas virtuais. Embevecidos, se  acariciavam, trocavam juras e confidências, namoravam, se ofereciam um ao outro, proclamavam posses absolutas, mentiam muito como todos os amantes e sobretudo gozavam... gozavam até desfalecerem em atos sublimes e virtuais.
 
        Noites se seguiram, meses se completaram com outros tantos encontros de horas marcadas. Anderson lhe recitava poesias, citava textos de autores apaixonados e provérbios filosóficos. Assim aprendeu de Albert Camus que “A felicidade e o absurdo são dois filhos da mesma terra”, consequentemente viveram todo o absurdo possível e foram felizes.
 
        Tudo estava muito bem até que veio a crise financeira. A Bolsa de Valores despencou, o dólar subiu e a inflação voltou. A filha Joanna perdeu o emprego e o seu marido entrou em depressão. Hidelgardes ficou sem alternativa. A contragosto teve que acolher a filha, o genro e os netos na casa grande, agora cheia de gozos e orgasmos que Anderson, o amante virtual, preenchera em pouco tempo.
 
        Mesmo com este contratempo, se trancava no quarto mais cedo e escapava pela web para encontrar o amante que, cada vez mais ardente, jurava fidelidade, prometia amor eterno e a levava aos píncaros dos delírios. Mordia o travesseiro para sufocar os gemidos. Engolia com a boca seca os ais e os uis que ameaçavam escapar-lhe da garganta. Temia que a filha ou genro a escutasse.
 
        Numa madrugada, quando o jovem amante em uma das sua fantasias veio disfarçado em Eros, não pode se conter e se entregou totalmente à libido: provou mais uma vez do desejo violento, da paixão, da luxúria. Deixou-se ser flechada várias vezes pelo deus do Amor. No ápice do orgasmo, ouviu que alguém batia à porta do quarto. Desligou o computador, se apressou para tirar o vestido justo, pôs a camisola de um relance, assanhou os cabelos e correu para atender. Quando abriu a porta do quarto ouviu a pergunta:
 
        — Vó, a senhora está passando bem?
 
        Era o  Anderson, o neto mais velho de dezesseis anos. Disfarçando um ar de sono, ela respondeu que estava sonhando com o falecido Schultz, seu avô, e que estava tudo bem. Viu no olhar do neto que não o convenceu com a resposta. Também ela não pode esconder as partículas de orgasmo que ainda flutuavam no ambiente. Ele foi embora. Ela não pode mais dormir.
 
        Os dias seguintes foram de tormenta e desespero. Cada vez que o Anderson, o neto, passava por ela, via nele o Anderson, o amante, e sentia o seu olhar cheio de desejos. Eros habitava sua casa e impregnava todo o ar da energia motriz dos instintos de vida.
 
        Evitou navegar pela web por uns dias. Voltou a freqüentar mais assiduamente a igreja. Queria se livrar daquele duplo complexo edipiano, se assim pode se dizer. Tudo isso de nada adiantou.
 
        Hidelgardes começou a variar. Não acreditando mais em pecados, numa noite de lua bem cheia não resistiu e quis escutar todas as palavras de carinho, quis reviver todos os gozos e quis se entregar a todos os orgasmos e devassidões que já lhe faziam falta. Que tudo de danasse! Queria o prazer. Se recolheu mais cedo ao seu quarto e repetiu o ritual: colocou o vestido justo verde-abacate, tomou uma ou duas taças de vinho tinto, espargiu gotas de perfume doce sobre o pescoço e o colo desnudo, pensou no Schultz, depois no amante virtual, imaginou Anderson se adentrando pelo quarto flutuando como um Eros e se dirigiu à escrivaninha. Ao ligar o computador viu que não funcionava. Apertou todas as teclas, clicou o ratinho desesperada, ligou e desligou todos os botões, checou a tomada. Nada. Nada funcionava. Tomou da chave de fenda e abriu as peças querendo descobrir o defeito. Nada. De nada adiantou. Tentou desesperadamente conectar seus desejos com o seu Cupido e nada conseguiu pelo resto da madrugada. Desatinadamente quebrou todo o computador sem conseguir o resultado desejado.
 
        Naquela noite Anna enlouqueceu de vez.

                                                                      Fernando Tanajura Menezes

 

 

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